1986

1986 Lothar Herzog Crítica Filme Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020 Sinopse: Elena é uma estudante que vive em Minsk, na Belarus. Ela é apaixonada pelo namorado, Victor, ainda que a relação seja cada vez mais difícil. Depois que seu pai é preso, a jovem precisa dar continuidade aos seus negócios ilegais. Para fechar acordos em nome dele, Elena tem que dirigir um caminhão inúmeras vezes em direção à zona proibida de Chernobyl. Ela passa a se sentir atraída pela beleza do local —enquanto sua vida parece cada vez mais contaminada por uma força destrutiva. Enquanto Elena adentra essa região, ela imerge em um ambiente surreal que a confronta com o passado e com a história de sua família, e revela como o impacto do acidente de Chernobyl permanece presente mais de 30 anos após o ocorrido.
Direção: Lothar Herzog
Título Original: 1986 (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 17min
País: Alemanha | Bielorrússia

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Dessa Água Eu Beberei

Para fugir de obviedades e metáforas sociais preguiçosas, “1986” nos leva a uma forma diferente de imersão. Apresentada na seção Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – disponível gratuitamente na plataforma Sesc Digital – a obra de Lothar Herzog é uma narrativa tão escura, melancólica e sem perspectiva quanto sua protagonista Elena (Daria Mureeva). Encontra um pouco de objetividade justamente na contemplação de uma tragédia, aquela vivida com o acidente nuclear de Chernobyl. Mais do que tecer eventuais consequências naquele território – e na apresentação do filme o cineasta destaca a atual situação da Bielorrússia – ele quer transpor a ótica de uma jovem que tem crises para chamar de suas.

Nascido na ex-Alemanha Ocidental, Herzog comanda seu primeiro longa-metragem, apesar de não fazer parte da competição de novos diretores do festival. Na produção do filme, um membro da equipe foi preso enquanto captava imagens de um protesto e segue aguardando julgamento. A Bielorrússia, para aqueles que não se interessam tanto pelo geopolítica internacional, foi destaque apenas no início da pandemia do novo coronavírus pelo forma como o Presidente (há 26 anos) Aleksandr Lukashenko lidou com a situação. Com naturalidade e a certeza de que a grande nação estava imune. Tanto é verdade, que os campeonatos esportivos sequer foram interrompidos.

Não houve transição flagrante do fim do regime soviético e da atual situação do país, visto que esse governante era membro do Partido Comunista e detém o poder deste a extinção da União Soviética. “1986” faz um retrato de como a Bielorrússia é vendida para seus habitantes, em diálogo direto com os regimes autoritários. “Milagre Econômico” é uma expressão que surge em uma cena de aula – e nós aqui no Brasil sabemos muito bem quando ela foi utilizada por nossas terras. Um governo que propala sucesso, se autoproclamando a ex-nação soviética mais desenvolvida do bloco, com PIB sempre em alta e gastos com políticas sociais que batem recordes proporcionais em todo o mundo.

Do lado de fora, todo esse progresso é difícil de ser materializado. Elena, então, é a agente que nos conduz por um ambiente onde, aparentemente, é impossível não ser feliz. É com estranheza que observam seu trabalho denso como fotógrafa, em paletas escruas que não condizem com o ideal socialmente construído. Em determinado momento ela verbalizará que, a real, é que ela não sabe o que quer. A protagonista é a própria consequência de uma era de desinformação, a qual estamos com dificuldades de compreender até mesmo quem somos. O diretor aponta seu radar para um território profícuo neste debate, não apenas pelo passado que transformou uma zona do país em espaço inabitável. Herzog se propõe a falar da Bielorrússia de agora.

A indecisão da personagem de Mureeva gera danos em suas relações sociais. O afeto do namorado perde foça e ela mesma já não consegue cumprir a proposta de fidelidade amorosa. Quando parecia estar vagando sem sentido, ela vê na prisão do pai uma oportunidade. Sim, parece que ali ela, inconscientemente, cria um desejo de aventura sob a desculpa de cumprir os compromissos dele e fazer dinheiro para lhe ajudar. Ela não precisa desconstruir um apego à ética e à legalidade, porque parece que – na régua moral daquela nação – insurgentes velados como ela serão ignorados.

Sob essa ótica da invisibilidade, Elena pratica o total desapego. O mesmo faz Lothar Herzog no terço final de “1986“. Ele cimenta uma intrigante narrativa, para depois abandoná-la. Faz em um leque de pontas soltas que – ao mesmo tempo que desaponta o espectador preso às convenções de linguagem – liberta aquela jovem. Sem a pressão por dinheiro, as dúvidas do futuro, a traição mal resolvida e o desapontamento com o país. Mergulhar em um trauma do passado, reverberado em todo o mundo, a faz esquecer da tragédia do presente.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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