Febre do Rato

Febre do Rato

Sinopse: Em “Febre do Rato” conhecemos Zizo (Irandhir Santos), um poeta anarquista que publica um jornal indepedente e passa seus dias na vã tentativa de conscientizar seus pares na periferia recifense em que vive. Aos poucos, suas interações sociais lhe renderão frutos e o tornarão menos frustrado em seus intentos.
Direção: Cláudio Assis
Título Original: Febre do Rato (2011)
Gênero: Drama
Duração: 1h 45min
País: Brasil

Febre do Rato Imagem

Uma Pitada de Candura

Febre do Rato” me fez lembra da inesquecível sessão do Cine Odeon na Cinelândia em que vi na tela grande uma obra de Cláudio Assis. A revisitação dos longas-metragens do cineasta me transportou para 2012 (ano do lançamento comercial) e o que significa a efervescência cultura daquela quadra que nos leva do Passeio Público à Lapa, no Rio de Janeiro. O auge (ou início da decadência) de uma juventude que se descobriu e redescobriu a partir da derrubada de rótulos, enquanto o conservadorismo se reciclava, à espreita e formulando novos mitos.

Esse é o filme mais cândido da filmografia de Assis – mesmo que não o seja. Ele traveste essa doçura com uma estilização que afasta essa produção de “Amarelo Manga” (2002) e “Baixio das Bestas” (2006). Traz o verniz poético nas narrações e monólogos de Zizo (Irandhir Santos), inspirado no poeta recifense Miró. O passeio de barco pelo Recife cria uma estrutura a partir do território, abordagem coerente com a maturação estética do Cinema Brasileiro dos últimos anos – que chega à maturidade do próprio Assis. Após um prólogo não apenas poético como contextualizante, o diretor insere o sexo como ferramenta narrativa a partir de um desfolhamento, contrastando muito com o controverso filme anterior.

Aliás, Cláudio Assis parece insistir em tornar didática a abordagem sobre o corpo em “Febre do Rato“. Usa o plano zenital em quase todas as cenas de sexo, se servindo de uma marca estética criada na própria filmografia até então. Uma maneira de telegrafar e pedir passagem sem traumas, denotando que o cineasta – extremamente original e talentoso – não pode afirmar que ignora eventuais críticas passadas. Naquela sessão do Odeon, em que as produções nacionais ocupavam menos espaço na vida de um crítico não-praticante à época, lembro de todo o estranhamento e da sensorialidade provocada pela obra.

Vale lembrar de conhecer naquele dia a presença marcante da atriz Nanda Costa em cena. Revisitando “A Febre do Rato”, fica a sensação de ser a sua Eneida a primeira personagem feminina multidimensional, de fato, explorada pelo cineasta. Apesar de uma construção ainda idealizante, corroborada pelas insistentes intervenções poéticas de Zizo, estamos ali diante da primeira recifense do mosaico de Cláudio Assis que, finalmente, possui ingerência sobre si – principalmente seu corpo. Por mais questionadoras que fossem as personagens interpretadas por Leona Cavalli em “Amarelo Manga” e Dira Paes nas três obras do diretor, a representação sempre se valia da vulnerabilidade de gênero como fator fundamental.

Fico com a romantização de ser esse um dos motivos pelo qual Eneida me parecia mais apaixonante na gigante tela do Odeon de 2012. Antes mesmo dela surgir em cena, as tensões e fricções socais de “Febre do Rato” são bem mais envolvedoras do que o filme anterior do pernambucano. É provável que essa seja a obra de Assis a ser superada, posto que atinge – finalmente – uma imoralidade prazerosa, uma direção bem mais voltada ao deleite coletivo do que para satisfação própria (e aqui vai desde o espectador até o próprio cineasta). Tanto no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro quanto no Prêmio Guarani o filme foi o vencedor na categoria principal. A fotografia em preto e branco não dá aquele incômodo de que estamos diante de uma emulação de filme arthouse, pelo contrário. A Recife de “Febre do Rato” é a mesma Recife de Cláudio Assis. Todavia, é possível que muitos não elevem essa produção ao topo da lista justamente por adicionar um elemento estilizante – mesmo que tudo funcionasse igualmente bem sem ele.

O arco de Zizo faz valer a escolha por uma narrativa menos pulverizada, já que o protagonismo nos outros filmes é dividido por quatro, cinco pessoas. Aqui a evolução da personagem segue um crescendo que torna seus momentos finais alguns dos marcantes na produção audiovisual brasileira contemporânea. Um clímax que traz a maior alegoria política da filmografia agora revisitada, usando uma parada de Sete de Setembro para que o homem vivido por Irandhir Santos pudesse exercer sua anarquia com plenitude.

Aquela abordagem desfolhante em relação ao sexo identificada nos primeiros dez minutos é espelhada e alçada à literalidade na bela conclusão de “Febre do Rato”. Ela é levada ao máximo no discurso de Zizo em cima do carro, onde cada corte desnuda ainda mais o elenco. Por fim, os participantes do comício improvisado gritam sem serem provocados: “direito de errar”. Parece uma resposta de Cláudio Assis àqueles que lhe puniram pelo fetichismo de “Baixio das Bestas”. Mesmo sem concordar que errou, tome lá um pedido de desculpas. E fica com mais um plano zenital, carregado de luxúria, como take final.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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