Festival de Gramado | Curtas Gaúchos | Programa 1

Festival de Gramado Curtas Gaúchos Programa 1

Abrindo a programação de curtas-metragens do Rio Grande do Sul no Festival de Gramado 2020, o Programa 1 nos fez transitar no tempo e no espaço, ao longo de seis obras (a maior lista dentre as sessões). Do nascimento à imigração, passando pela inescapável pandemia do coronavírus, até chegarmos na ancestralidade, tão importante e que merece sempre marcar presença em todos os festivais do audiovisual brasileiro.

Índice de Filmes
(na ordem de apresentação da sessão, clique em seus nomes e seja direcionado à parte do texto correspondente)

Dois Homens ao Mar
O que Pode um Corpo?
O luto impossível
Pra Ficar Perto
O Céu da Pandemia
Quando te Avisto

Ficha Técnica da Sessão Programa 1 de Curtas Gaúchos


Dois Homens ao Mar

Panorama 1 Dois Homens ao Mar

Com “Dois homens ao Mar“, o realizador Gabriel Motta inicia no Programa 1 o que seria um passeio panorâmico pela produção gaúcha trazendo uma quebra de expectativa. Estamos na Estônia, onde César envia uma mensagem de áudio para a sua mãe. Perto da fronteira com a Rússia, o comércio de rua e as vielas com uma arquitetura clássica faz a cidade de Tallinn se parecer um pouco com o território latino-americano. Ali, tanto César quanto Martin, com o qual trocará algumas palavras, estão à deriva.

Perdidos entre as projeções de futuro ou no que consiste os desejos sobre o presente. O primeiro é um artista de rua, que – apesar de todas as dificuldades de adaptação a um país muito distante e diferente do seu – tem um desapego pelo corpo e por qualquer manifestação. Sente falta de não exercer seu ofício, aliás. O segundo é um programador de jogos inserido em uma lógica padronizante de família. O curta-metragem parte desta longa cena no café para se mostrar um exercício de epifania de Martin. Vai saber se, como e o quanto aquelas dúvidas pairavam antes pela sua cabeça. Motta segura até o fim a resposta sobre a consolidação desta epifania, no clássico cenário cheio de possibilidades de uma linda estação de trem.

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O que Pode um Corpo?

Curta O Que Pode um Corpo Gramado

O que Pode um Corpo?” tem início quase experimental, na perspectiva de um feto à beira do nascimento. Só que na simulação do útero está o artista visual e cênico Victor, que assim como o protagonista do curta-metragem anterior usa a corporalidade como linguagem. Só que este homem tem uma história de vida ainda menos padronizada do que a de César.

A mãe de Victor, asmática, sofreu complicações no parto e seu filho veio ao mundo natimorto. Ressuscitado por médicos e enfermeiros, a ausência de oxigenação no cérebro nos primeiros momentos de vida lhe trouxe dificuldades neurológicas, atrapalhando principalmente a fala. O protagonista do filme usa o vocábulo deficiência, sem se preocupar com a carga semântica. Victor é muito forte em suas palavras e convicto de si. Lá no Panorama 4 encontraremos outro personagem e uma produção que trata de pessoas com deficiência. Nem ele e nem o entrevistado de “O que Pode um Corpo?” fogem dos assuntos mais delicados relacionados às suas condições.

O que mais chama a atenção é que Victor derrama sinceridade em seu depoimento. Confessa que tem dias que se ama (muito) e outros em que se odeia e lamenta o que lhe ocorreu quando bebê, tornando seu convívio na sociedade mais desafiador. Uma importante lição sobre como não somos obrigados a nos sentir bem conosco todos os dias.

Os diretores Victor Di Marco e Márcio Picoli usam muito bem a corporalidade como narrativa e vemos por vezes o entrevistado em uma performance onde aparece amarrado por muitas cordas. É então que ele fala de sua homossexualidade e como precisou passar por dois processos de libertação do corpo. A montagem, muito sensível, deixa esses trechos mais tocantes – e difíceis para Victor se manifestar – concentrados no trecho final.

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O Luto Impossível

O Luto Impossível Panorama 1

Um processo que muitos de nós passamos nesse período de isolamento (para alguns chegou ao fim, mas aqui sigo do mercado e da farmácia para casa há quase 200 dias), foi a revisitação e organização de objetos e memórias dentro de casa. Bruno Carboni traz em “O Luto Impossível” uma dessas possibilidades, em um curta-metragem biográfico muito marcante, mesmo com apenas quatro minutos.

Ele nos convida a mexer no HD externo de seu pai, um homem que não deixou de realizar seu desejo de ser professor, mesmo trabalhando por muitos anos como bancário. Pessoalmente, esse cenário de sermos mal resolvidos com a perda de um pai (no meu caso, da mãe) é algo que nos acompanha em toda a nossa trajetória. Sempre voltam as lembranças e há fases em que eles nos reaparecem em sonhos. Até mesmo nos pegamos exercitando em nossa mente o que seria de nós caso aquela pessoa tão próxima não tivesse partido tão cedo. Uma obra que reflete a coragem deste realizador, que em um momento tão difícil e que tem nos provocado tantos sentimentos, fez um caminho de resgate que pode ser ainda mais doloroso.

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Pra Ficar Perto

Pra Ficar Perto Curta Gramado

Em “Pra Ficar Perto“, o realizador Lucas dos Reis cria outra obra tendo o isolamento social causado pela pandemia do coronavírus como objeto. Um casal conversa por Whatsapp, cansados por estarem há mais de um mês distantes. Se valendo do filão do desktop movie (no caso, um app movie), o diretor faz toda a narrativa dentro do programa de telefone celular. De início, nos exige total atenção com o que está sendo digitado. Com o passar de seus quase sete minutos, usa outra ferramentas.

O curta-metragem é curioso porque, ao trazer uma história fantástica sobre uma simpatia que aproximaria os corpos, a expectativa de Rafa (a menina que pede para o namorado fazer o procedimento e acreditar nele) é chegar a uma espécie de teletransporte. Condensa bem nossas intenções quando, no auge de um confinamento que acreditávamos que seria mais intenso (porém, mais breve), discutíamos diariamente as possibilidades de extrapolarmos a virtualidade rompendo de vez com os limites da distância. Lucas, em ritmo de brincadeira, dá asas às nossas obsessões.

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O Céu da Pandemia

O Céu da Pandemia Curta Panorama 1

Terminando a “trilogia pandemia”, o curta-metragem “O Céu da Pandemia” de Marina Kerber toca no angustiante elemento que permeia nossa existência em 2020: o fato de todos os dias parecerem iguais. Por sinal, este é o motivo de termos a sensação de que este ano está muito mais longo do que os outros.

Há dias que não dormimos (ou só dormimos), que não comemos (ou só comemos). Falamos três dias seguidos com um amigo achando que estávamos há dias sem se falar – e em outras demoramos mais de um mês para responder uma mensagem. Quando a vida nos permitiu ter o controle total, devido à limitação espacial e de atividades, perdemos totalmente a noção de tudo. O que Marina faz é resgatar algumas das maneiras como estamos lidando com essa situação, como se nos deixasse um arquivo para aquela época (que um dia chegará), “onde iremos rir de tudo isso”.

Via Zoom, a protagonista tenta comemorar, à distância, seu aniversário. Mostrando para as câmeras os pets, cantando parabéns com bolos caseiros e uma vela improvisada, admirando o panelaço contra o Presidente da República (que sempre nos surpreende na madorna de algumas tardes). Em cinco minutos, “O Céu da Pandemia” registra seu tempo e já cria em nós lembranças sobre um período que era para ser tão curto e que já não lembramos como vivíamos antes dele.

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Quando te Avisto

Quando te Avisto Curta Gramado

Encerrando o Programa 1, temos uma das cenas mais marcantes até agora do festival. Em sua abertura, “Quando te Avisto” usa um drone para mostrar uma moça indígena, que parecia no meio de uma floresta, está no meio da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Um dos poucos documentários mais tradicionais apresentados, o curta-metragem toca em uma importante questão sobre a origem do povo brasileiro – em especial em terras gaúchas.

Seguindo uma tendência da região cisplatina, há um apagamento muito mais profundo no que diz respeito aos povos originários. Intencionalmente, as representatividades guaranis e caingangues nunca fizeram parte dos diálogos e ensinamentos, evitando que a população de Santa Maria não criasse vínculos com sua ancestralidade. Uma zona que concentra muitos proprietários de terra que, desde cedo, tem noção do “perigo” que essa informação causa aos seus negócios.

O filme se complementa com depoimentos de historiadores que lidam bem com a complexidade deste processo de romantização do genocídio indígena naquele território. A jovem que abre o documentário vai para uma Universidade e, devido à sua miscigenação, sofre preconceitos de todos os lados. De forma serena, nos mostra como lida com isso. Ela foi criada para fechar seu corpo em amor e orgulho, ao contrário da sanha competitiva com a qual o homem branco leva aqueles que lhe sucederão.

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Ficha Técnica da Sessão Programa 1 de Curtas Gaúchos

Dois Homens ao Mar (Porto Alegre), de Gabriel Motta / 17′
Sinopse: Ao deixar o Brasil, César conhece Martin em um café vazio de Tallinn, Estônia. Em frente aos dois homens, apenas o incerto infinito do mar.
O que Pode um Corpo? (Porto Alegre), de Victor Di Marco e Márcio Picoli / 15′
Sinopse: Um bebê nasce, mas não chora. Um corpo grita e não é ouvido. As tintas que escorrem em um futuro prometido, não chegam em uma pessoa com deficiência. Victor faz de si a própria tela em um universo de pintores ausentes.
O luto impossível (Porto Alegre), de Bruno Carboni / 4′
Sinopse: A pandemia e o isolamento social me fizeram voltar a sonhar com meu pai. Sua visita me fez retornar ao seu antigo HD e nele encontrar surpresas em meio à fotografias e vídeos da família.
Pra Ficar Perto (Sapucaia do Sul), de Lucas dos Reis / 06’24”
Sinopse: Para estar junto não é preciso estar perto. Para Rafa, é.
O Céu da Pandemia (Porto Alegre), de Marina Kerber / 5′
Sinopse: Eu achei que era um sonho. Não tinha ninguém na rua e eu tava sozinha. Todos os dias são iguais, mas hoje é meu aniversário.
Quando te Avisto (Santa Maria), de Denise Copetti e Neli Mombelli / 25′
Sinopse: O que acontece quando dois olhares se cruzam? E se esses olhares compartilham de um mesmo espaço, mas se constituem em mundos próprios? O que afasta e aproxima indígenas e não indígenas?

Clique aqui e acompanhe nossa cobertura completa do Festival de Gramado 2020.

Clique aqui e visite a página oficial do evento.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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