Push: Ordem de Despejo

Push: Ordem de Despejo

Sinopse: Os preços de imóveis estão disparando em cidades ao redor do mundo. A renda do cidadão comum, não. Push: Ordem de Despejo lança luz sobre um novo tipo de proprietário sem rosto, sobre nossas cidades cada vez mais inabitáveis e uma crise crescente que afeta todos nós. O filme acompanha Leilani Farha, relatora especial da ONU sobre o Direito à Moradia, em suas viagens pelo mundo, tentando entender quem está sendo expulso das cidades e por quê. “Eu acredito que há uma enorme diferença entre a habitação como uma mercadoria e o ouro como uma mercadoria. O ouro não é um direito humano; a habitação, sim ”, diz Leilani.
Diretor: Fredrik Gertten
Título Original: Push (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 32min
País: Suécia | Canadá | Reino Unido

Push: Ordem de Despejo

Caos Financiado

Desde o início da trajetória da Apostila de Cinema, falamos que ver o mundo pela perspectiva territorial e – quebrando a classificação – pela ótica da moradia, é fundamental. O sueco “Push: Ordem de Despejo“, que faz parte do recorte Panorama Internacional Contemporâneo vinculado à Economia, abre de forma densa e conteudista a 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Não poderia deixar de ser, porque o desenrolar da questão inicial trazida pelo cineasta Frederik Gerrten é muito complexo.

Gestado ao lado de Leilani Farha, relatora especial da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre Direito à Moradia, tem nela um comandante de ações de uma jornada que parecia específica. Sua árdua missão seria entender porque a especulação imobiliária continua imparável em seu processo de esmagamento do proletariado mundial. Mesmo fazendo parte de uma das principais organizações do planeta e com um objetivo aparentemente bem definido, o longa-metragem segue uma linha comum no gênero documentário – se pautando pelos acontecimentos do momento.

Mesmo que soe como algo provocado, essa maneira de montar o filme o torna mais atrativo, já que a cesta de temas suscitadores de debates está carregada. Não é tão didático quanto outras obras mais engessadas, que provavelmente construiriam um arco para apresentar a crise imobiliária de 2008, que – como sempre – virou oportunidade para as empresas e pessoas mais ricas do mundo potencializarem seus lucros. Gerrten e Farha transitam, nos levam primeiros a algumas das cidades mais caras do globo (Toronto, Nova Iorque, Londres, Berlim, Barcelona, Milão) e mostram como a habitação é fator primordial para esse fenômeno.

Só depois que o antagonismo emerge. Com uma edição que se vale de vídeos institucionais, a Blackstone – gigante do ramo imobiliário – surge. Todavia, o que se destaca em “Push: Ordem de Despejo” é a problematização de um dos grandes males da sociedade atual, uma palavra cada vez mais usada (como ocorreu outrora com sustentabilidade): a gentrificação. Por vezes, sacada como desculpa ou como elemento único – quando, na verdade, ela faz parte de uma engrenagem.

Quando o esmagamento citado atingiu a classe média, a habitação ganhou peso nas discussões que envolvem o direito à cidade. Reflexo direto de um processo de reconfiguração do trabalho e das profissões – que faz com que profissionais liberais, advogados, jornalistas, médicos, não ganhem automaticamente posições seguras na cadeia alimentar por força de um diploma. Este documentário passa ao largo da questão da uberização, então deixamos de nos alongar nesse prisma. Ele ataca diretamente a afirmação de que, cada vez mais, é impossível morar nas regiões centrais das grandes cidades. Uma assertiva que ultrapassa a mera desigualdade social como fato gerador. Acumulamos cada vez mais imóveis sem destino, sem cumprir sua função social. Empresas como a Blackstone os adquirem para tirar do mercado e falsamente encarecer os metros quadrados de determinadas regiões.

É curioso como, sem nos darmos conta, “Push: Ordem de Despejo” nos leva a outras modalidades da falência da sociedade na qual vivemos. Pontos como a extinção de comunidades pelo esvaziamento de uma área e até mesmo o consumo padronizado. Chama a atenção o questionamento, sem citar a Starbucks, sobre a necessidade de bebermos um café na esquina vendido por uma grande corporação. Eu fui um que, ceticamente, entendia que a chegada desta loja no Brasil não daria certo – já que não faz sentido pagarmos caro por um conceito, sendo que somos a nação que exportamos este produto, que oferecemos de graça em garrafas em qualquer lugar que entramos para pedir informação. Esta precificação em cima de uma utopia de consumo, de se sentir parte de uma era global – esquecendo nossas referências culturais diretas – é parte do problema. Mas seguimos sem internalizar isso.

O documentário ainda traz a lavagem de dinheiro, os paraísos fiscais e até o narcotráfico como peças deste mosaico que vai deixar em breve grande parte da população sem teto. Vale o registro de que, mais de uma vez, os entrevistados frisam que a especulação imobiliária é algo que já transcendeu o Capitalismo. Estamos falando de um acúmulo de riqueza que ultrapassa a soma do PIB do planeta. Não há nação do mundo que seja páreo para gigantes como a Blackstone – e a forma de fish tank com a qual o empresariado atua, levará a uma concentração que tornará os gigantes da tecnologia e dos imóveis nossos reais comandantes (se já não o são). Coloque no papel o quanto você gasta com moradia e o que lhe é derivado, em porcentagem sob seus ganhos mensais – e reflita.

Se há algo a se lamentar no longa-metragem, é que poderia ter cutucado mais fundo duas feridas por ele abertas. A primeira é a relacionada ao Airbnb. Uma empresa que não quer ouvir falar em regulação e se vale dessa concentração de propriedades na mão de poucos. É menos visada do que outras startups porque consegue seus bilhões explorando (só um pouquinho) menos seu material humano. A segunda é quando chega no aluguel comercial o processo de esmagamento. Um senhor que vende doces, intimado a aceitar um extorsivo aumento no seu pagamento mensal, fala da consequente necessidade em aumentar o custo para seus clientes. Aqui há uma outra ótica sobre a gentrificação: onde ela não se torna a desculpa e sim a consequência, mesmo que o objetivo do pequeno empresário não seja este.

Poderia dividir alguns exemplos práticos que me vieram à mente ao assistir “Push: Ordem de Despejo“. Um filme muito poderoso em suas provocações, que joga ralo abaixo o ideal cosmopolita e o sonho da manutenção de tradições familiares vinculadas ao território. A Modernidade Líquida será dura aos apegados ao lar, porque o futuro não reserva nada positivo. O pior é saber que, por mais grave que seja, estamos passando ainda da ponta do iceberg. O terreno que Frederik Gerrten adentrou, muito bem verbalizado por Leilani Farha, é o da transformação de direitos humanos fundamentais em commodities. E mesmo assim, uma cena nos marca: a relatora da ONU discursa para os países-membros sobre tudo isso que tratamos aqui, mas os representantes prestam atenção apenas nos seus celulares. O teto deles, com certeza, ainda não lhes faz falta.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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