24ª Mostra Tiradentes | Mostra Praça | Série 1
Encontro com o Popular
Em 2021, a 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes não pode realizar uma das melhores trocas do festival na Mostra Praça. Em um dos momentos em que a democratização de acesso se materializa de forma mais contundente, uma série de curtas e longas-metragens são apresentados para quem quiser chegar no espaço. Com um apego mais popular, os filmes tendem a tratar de manifestações culturais e assuntos mais arraigados no público – sem perder, claro, o tom crítico.
Com isso, as possibilidades de criar pequenos debates em vários núcleos acontece. Esse ano (e esperamos que de forma excepcional), esse exercício precisa ser feito na casa de cada um. Isso não tornou a seleção de obras menos interessante. Como uma parte delas já circulou por outros grandes festivais brasileiros, a Apostila de Cinema os revisitou. Indicaremos sempre os links com os textos produzidos originalmente. Afinal de contas, cada olhar, de cada momento, faz diferença. Ainda mais com uma curadoria que sempre pauta sua programação e divisão por sessões que conectem as produções.
Abrindo a série 1, o curta-metragem “Primeiro Carnaval“, dirigido por Alan Medina nos faz reviver aqueles primeiros momentos nos quais nos damos conta do que é fazer parte de uma das maiores festas populares do mundo. Morando no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de pular carnaval nos blocos de ruas e também nos bailes, mas o momento mais ansiado eram os aqueles antes dos desfiles nos quais os carros alegóricos ficavam no Centro do Rio como se fizessem parte daquele espaço.
Ainda que o Carnaval de cada cidade guarde suas particularidades (os da Bahia e de Recife são bem diferentes , por exemplo), há algo mágico que Alan Medina consegue captar, que nos move a partir da expectativa do que está por vir, uma paixão que nos faz misturar ansiedade e medo do imprevisível com a vontade de festejar.
A sessão continua com “Quarta: Dia de Jogo“, mais uma abordagem de um aspecto cultural muito forte no Rio de Janeiro, dessa vez pelos olhares das realizadoras Clara Henriques e Luiza França. O documentário, entretanto, começa muito antes. Desde as preparações para as feiras de rua, até os quiosques que alimentam e antecipam a interação social motivada pela partida.
Apesar do jogo, a investigação é sobre a popularmente chamada Feira de São Cristóvão e o brega, outra maneira de lazer do carioca. Com suas máquinas de karaokê e seus bailes instantâneos, a feira é um verdadeiro mundo. O brega também faz parte da cultura carioca e a Feira é apenas um desses espaços. Centro de encontro dos nordestinos que moram no Rio, o ponto atrai bem mais somente aqueles que vivem nessa região do país. Aspectos que nos lembram não apenas o impacto social, mas também econômico das atividades que servem de mote para o filme – e o quanto o estado de constante vigilância que o isolamento social criou prejudicou.
Apesar de um dos entrevistados entender o brega como intruso no Rio, me parece mais um malandro, que chegou de mansinho com seu chapéu de couro para ficar.
Reencontramos, então, “Pega-se Facção“, curta-metragem de Thaís Braga que fez parte de uma das melhores sessões do 15º Festival Taguatinga de Cinema ano passado. Exibido na Mostra Paralela, ao lado de “Filhas de Lavadeiras” e “Seremos Ouvidas”, havia ali uma conexão pelos discursos de corpos femininos invisibilizados (deixamos aqui nosso texto original).
Agora o filme surge em uma sessão que começa com certa leveza e a obra parece cumprir também uma importante função de transição de linguagem. Ainda que o documental seja a linha-mestra da série, as dinâmicas sociais ganham um olhar a partir da força de trabalho e do impacto da precarização desse tipo de relação em uma sociedade. Imaginar o espectador vendo sequencialmente essas produções, é tirar um pouco o viés festivo, de manifestações culturais enquanto algo a ser apenas celebrado.
Quando retornamos ao Pólo Têxtil do Agreste Pernambucano é quase como se inaugurássemos um debate que parece unificar o entendimento de que vários aspectos de nossa sociedade são importantes, merecem uma ampla discussão – e alguns deles vão bem mal.
24ª Mostra Tiradentes | Mostra Praça | Série 1
Até que “Casa com Parede” nos leva ao nosso primeiro texto da Apostila de Cinema, produzido na abertura da cobertura da Mostra Lona 2020. O curta-metragem de Dênia Cruz traz ao centro da questão a política habitacional (veja aqui nosso texto original). Também integrante de uma forte sessão em nossa primeira experiência (incluindo o potente “Na Missão, com Kadu”, dos onipresentes Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito), há um forte apelo pela importância das figuras femininas em um espaço de ocupação.
Por sinal, em “Aponta pra Fé” falamos um pouco dessa liderança natural, ainda um reflexo da divisão de funções de uma sociedade machista. Porém, dentro da sessão da Mostra Praça encontramos aqui o grande pico na tonalidade crítica dos filmes. Trazer ao centro de uma seleção popular a questão da moradia é de fundamental importância e marca um posicionamento sobre uma filmografia que vem sendo produzida há anos sobre esses territórios.
Iniciado apenas em 2012, Dênia Cruz é mais uma realizadora que consegue nos levar para dentro daquele espaço sem didatismo, deixando ao público tempo para construir seu juízo de valor – um passo importante que a programação de Tiradentes sempre nos permite dar.
Com direção de Flávia Correia e roteiro de Laís Santos Araújo, o curta-metragem “Ainda te Amo Demais” nos levam aos bailes de reggae que ocorriam em Maceió enquanto fenômeno cultural. Eles ainda persistem como força, mas já perderam um pouco do efeito avalanche que tiveram nos anos 1990, quando os salões ficavam cheios.
Ao pesquisar como estão hoje os principais nomes da cena daquela época, a equipe tem algumas surpresas. Primeiro é preciso passar um ensinamento que aprendemos no documentário. O reggae é composto por quatro estilos: roots, romântico, coreografia e malabarismo. E para ser reconhecido como verdadeiro mestre do ritmo é preciso dominar a todos.
O duelo de dança começou quando um grupo de homens amantes de reggae se reuniu para competir e ver quem era melhor em cada estilo. Era preciso haver muganga (palavra que também desconhecíamos, mas quer dizer jeito, trejeito). Assim, começaram dançando em duplas de homens, como foi originalmente o tango argentino. Com a chegada das mulheres, o movimento cresceu e tomou as carrapetas. Luana Freire, uma das mais conhecidas, abandonou o reggae há seis anos, mas é conhecida até hoje e o filme começa com seu retorno a Alagoas.
Por mais que cada um tenha tomada uma direção, o reggae ainda permanece vivo mesmo nos dreads que guarda o agora evangélico Nelias do Reggae. Apesar de não mais usá-los, o fato de estarem cuidadosamente separados revela que esse amor ainda vive.
Ficha Técnica Mostra Praça | Série 1
Primeiro Carnaval (Alan Medina, 5′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Uma criança vive a mágica do carnaval pela primeira vez.
Quarta: Dia de Jogo (Clara Henriques e Luiza França, 15′ – Brasil, 2020)
Sinopse: A quarta-feira, no Rio de Janeiro, é diferente dos outros dias por ter futebol à noite. “Quarta: Dia de Jogo” traça a jornada de alguns trabalhadores através da rádio Bafo de Onça. Mas como nem tudo é sobre futebol, há quem prefira dançar música brega na Feira de São Cristóvão ao fim do expediente.
Pega-se Facção (Thaís Braga, 13′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Em uma região onde a seca dura a maior parte do ano e a agricultura familiar não garante o sustento, mãe e filha veem como única saída a costura domiciliar terceirizada na zona rural de Caruaru-PE. Mas qual é o preço a ser pago?
Casa com Parede (Dênia Cruz, 16′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Um assentamento urbano em remoção, após um incêndio que destruiu mais de 50% dos barracos.
Mulheres, homens e crianças em mudança para tão sonhada moradia. Essa história é revelada
de forma lúdica por uma criança de oito anos que viveu com sua mãe numa comunidade entre
tábuas e lonas, mas que sonhava morar em uma casa com parede.
Ainda te Amo Demais (Flávia Correia, 21′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Algo insuspeito une essas pessoas. E agora elas se reencontram.
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Assinam o texto:
Roberta Mathias: Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia – Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas)
Jorge Cruz: advogado desde 2009, graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e escreve sobre cinema desde 2008.
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