Os oito curtas da programação do 2º FESTCiMM | Mostra Internacional não exploram um leque tão grande de linguagens como outras mostras do festival, fazendo com que a sessão seja pautada quase como que por uma unidade estética. A transição para lugares tão diferentes entre si, desde a Ucrânia até o subúrbio de Taiwan, passando pelo mundo dos sonhos, torna a experiência múltipla, claro. Todavia, o que chama mais a atenção é como há certas tendências narrativas no audiovisual atual, inclusive com relações sociais específicas. É o caso de filmes que envolvem a velhice, cada qual inserido em um ambiente cultural específico. A Apostila de Cinema fala um pouco de cada curta-metragem selecionado. Não deixem de acompanhar a cobertura completa do Festival nesse link. Segue um índice que nos leva diretamente ao filme em questão:
Ferdi
Choker
Transfugo
Anna
Uma Viagem com a Mãe
Matinê
Quando crescido selvagem e distante
Águas Vermelhas
Ferdi
(Aitor González, 2020)
O 2º FESTCiMM | Mostra Internacional se inicia com o representante da Espanha, “Ferdi“, do cineasta Aitor Gonález. O curta-metragem tem início com uma ligação de Luis Fernando Gutierrez a uma ex-esposa. A ideia é gravar um documentário sobre um homem que, sempre vestido tal qual Freddie Mercury, é uma espécie de sub-celebridade performática regional. Usando a já clássica linguagem do mockumentary, o realizador espanhol traz a comédia a partir da bizarrice, em uma entrevista concedida dentro de um apartamento que nos faz lembrar do primeiro grande viral da internet brasileira, o curta-metragem “Tapa na Pantera” (2006) de Esmir Filho. Estrelado por Maria Alice Vergueiro, falecida há pouco mais de um mês
Choker
(Orson Cornick, 2020)
“Choker“, representante do Reino Unido, é a obra mais intrigante desta programação. Em montagem paralela, nos mostra uma mulher que caiu dos céus em uma praia e um homem que, sem motivo revelado, precisa correr para encontrá-la. Orson Cornick traz um ritmo e uma linguagem que remete a peças publicitárias televisivas, deixando o incômodo todo pela forma como a protagonista se revela angustiada. Acabamos nos angustiando todos ao vermos as pessoas ao redor na praia tratando com normalidade aquele fato perturbador. Porém, normalizar morte parece ser tendência em 2020, infelizmente. Com pouco menos de quatro minutos, faz um bonito paralelo de encontro da paz em sua conclusão, após desorientar o espectador por todo o percurso.
Transfugo
(Rodrigo Tavares, 2019)
De Portugal, “Transfugo” é uma das parcerias do cineasta Rodrigo Tavares com Beto Coville, que nesse curta-metragem interpreta o protagonista António. O veterano ator foi premiado há um mês por outra obra de Tavares no Festival de Cinema Independente de Los Angeles (Indiex Film Festival). “A Margem” deve aportar, em breve, em algum festival por aqui, é o que esperamos. Já a produção selecionada para o FESTCiMM é crua, dura e a primeira a falar mais diretamente da chegada da velhice.
António é um português residente no Brasil que volta à sua terra-natal por conta do falecimento de sua mãe. Lá ele precisará reencontrar e ocupar o mesmo teto que seu pai, militar rigoroso com o qual tem um passado traumático, aos poucos revelados pela narrativa de Tavares. O protagonista, então, trata o progenitor com o mesmo descaso com o qual foi tratado um dia. Ele tentará encontrar algum asilo que receba aquele homem, permitindo que António volte à sua vida.
Portugal é um país com uma população extremamente envelhecida. Tanto que não apenas a presença física de brasileiros mais jovens é muito sentida nos grandes centros, como a interferência cultural parece cada vez maior. Tendo a possibilidade sempre rara de consumir uma obra desse país, chama a atenção em “Transfugo” a dificuldade do protagonista em achar uma casa de acolhimento de idosos, que se colocam como empresas que se dão ao luxo de “escolher” residentes ou empurrá-los para a fila de espera. Mas o que se destaca, de fato, é como o cineasta compõe os traumas de António e usa o retorno angustiante de uma casa que não é mais dele, com uma mobília velha, carregada de madeira, para dar o mesmo peso visual a uma trama que, de maneira diversa de “Choker”, é perturbadora.
Anna
(Dekel Berenson, 2019)
“Anna“, co-produção dirigida pelo ucraniano Dekel Berenson, foi exibido no Festival de Cannes de 2019, uma contribuição importante no catálogo do 2º FESTCiMM | Mostra Internacional, um evento ainda jovem. Seu início é visualmente potente. Ambientado em um frigorífico, a protagonista vê cada “peça de carne” ser tratada com números. Aos poucos há nela um despertar de que – no final das contas – ela também está em todos os lugares em que transita. Ou seja, sendo um número de igual forma.
A partir daí ela tenta, com certo desespero, mudar o rumo de sua vida. Mente a idade e aceita participar de uma festa em que ricaços estadunidenses procurarm esposas/escravas ucranianas para levar à América. Elas aparentemente “sabem cuidar do lar”, ao contrário das nativas da terra do Tio Sam. Uma espécie de tráfico de mulheres minimamente consentido. Berenson nos leva em uma trajetória tão soturna quanto a paisagem do leste da Ucrânia é capaz de construir e possui um ponto de virada acachapante, sem perder o foco melodramático, como uma obra do Leste Europeu gosta de apresentar em festivais.
Uma Viagem com a Mãe
(Sophie Shui, 2019)
Voltando à terceira idade como mote, “Uma Viagem com a Mãe“, da cineasta Sophie Shui, é o filme mais impressionante da sessão – e talvez esteja perto de ser de todo o festival. Xia (Yi-Wen Chen) tem uma questão com a mãe parecida com aquela que António, protagonista de “Transfugo”, tem com o pai. A senhora começa dar sinais mais graves de senilidade, a ponto de se tornar impossível deixá-la sozinha. Xia, então, abdica da própria vida para ser algo próximo de uma babá.
Sem emprego, entra em desespero quando sua esposa vai embora de casa com o filho. Coloca o personagem principal diante de uma dura escolha. Visualmente, as sequências mais impactantes são aquelas em que a mãe representa as consequências das limitações de memória. Desde esquecer que tem filho até a comum sensação de que está sendo roubada quando não encontra dinheiro – passando pela cruel dependência de fazer as necessidades fisiológicas acompanhadas. Só que Shui dá uma conclusão à história tão inesperada que nos faz questionar sobre nossa própria humanidade, posto que Xia passa todo o tempo buscando a empatia do espectador, que pode ser sentir traído ou pode se sentir cruelmente condescendente.
Matinê
(Alejandro Ortega, 2019)
Do México, “Matinê” diverte ao usar o cinema como linguagem e ponto de partida de uma narrativa que brinca com o “filme dentro do filme”. O diretor Alejandro Ortega nos traz um homem em situação de rua que encontra um ingresso para uma sessão e decide assistir ao filme. Lá ele terá que dividir espaço com um grupo de pessoas que, parecem sem noção à primeira vista, mas é o público de sempre das salas de cinema. Com direito a muito barulho para comer e celular que sendo retirado da bolsa e atendido. Coisas que vão fazendo o protagonista sentir cada vez mais raiva.
Dois momentos se destacam no curta-metragem de Ortega. O primeiro, como uma boa história latina feita para rir, se dá quando o uso do exagero e do absurdo tornam aquela exibição ainda mais nonsense. O outro é logo que as luzes se apagam e aquele homem é obrigado a assistir aos insuportáveis reclames publicitários que antecedem o filme. Carro, celular, comida e até mesmo candidato político. Tudo é vendido para um espectador que afunda na cadeira de tanto tédio. Só que esse tédio se dá mais pelo mesmo não estar inserido na sociedade de consumo ali propagada. Quando a magia do cinema ganha corpo, lá está ele conectado de novo com a experiência.
Quando Crescido Selvagem e Distante
(Arthur de Oliveira, 2019)
“Quando Crescido Selvagem e Distante“, de imediato, provoca a curiosidade de ver um cineasta com o nome de Arthur de Oliveira se qualificar como represente dos Emirados Árabes Unidos. Não apenas o jovem diretor lá está, como faz esse intercâmbio cultural desde muito novo (como pode ser visto em sua página oficial). Estudante de cinema, ele quer com esse obra em específico materializar a palavra saudade, de tão difícil tradução para outros idiomas.
Faz isso com uma simples história de uma visita do neto ao avô. Cansado da sociedade, o senhor evita usar o aparelho de audição quando recebe alguém. Mas para o menino ele é todo ouvidos. Gerações bem distintas, que dialogam a partir da insatisfação com o mundo. Apesar de focar nas relações familiares – e não na curiosa interferência cultural com os EAU – vemos que, no início da carreira, Arthur de Oliveira já se revela um contador de histórias de grande sensibilidade.
Águas Vermelhas
(Luane Costa, 2020)
Encerrando a 2º FESTCiMM | Mostra Internacional, o experimental “Águas Vermelhas” possui apenas dois minutos de duração. Trata-se de um exercício de Luane Costa, radicada no Canadá, em que o pesadelo de uma mulher em dia de piscina se torna real. Lembra um pouco a mesma linguagem comercial de “Choker”, com a diferença de que a provocação (e, acredito, que para o público feminino com adicionais como perturbação e incômodo devem ser identificados) duram a metade do tempo.
Ficha Técnica da Sessão 2º FESTCiMM | Mostra Internacional (Edição Garanhuns)
Ferdi (Aitor González, 7min – 2020, Espanha)
Sinopse: Luis Fernando Gutiérrez é um performer conhecido pela semelhança com Freddie Mercury. Um documentário revelará um pouco mais da vida desse intrigante personagem.
Choker (Orson Cornick, 4min – 2020, Reino Unido)
Sinopse: Quando uma garota cai do céu em uma praia lotada, um homem misterioso dirige a uma velocidade vertiginosa em sua direção.
Transfugo (Rodrigo Tavares, 20min – 2019, Portugal)
Sinppse: Ao voltar para Portugal, para o funeral de sua mãe, antónio é obrigado a enfrentar seus fantasmas de infância que o fizeram partir para o brasil, ainda adolescente. seu pai, um militar autoritário
Anna (Dekel Berenson, 15min – 2019, Ucrânia)
Sinopse: Vivendo no leste da Ucrânia, devastada pela guerra, Anna é uma mãe solteira que está desesperada por uma mudança. Atraída por um anúncio de rádio, ela vai a uma festa com um grupo de homens americanos que estão em turnê pelo país, em busca de amor
Uma Viagem com a Mãe (Sophie Shui, 25min – 2019, Taiwan)
Sinopse: Para cuidar de sua mãe antiga (interpretada por Liou, Yiin-Shang), que perdeu a inteligência e está desativada, Xia Changming (interpretada por Yi-Wen CHEN) permanece desempregada em casa.
Matine (Alejandro Ortega, 17min – 2019, México)
Sinopse: Depois de achar um ingresso, um homem em situação de rua decide ir ao cinema. Lá ele conhece a realidade de assistir a um filme, enquanto uma sequência de curiosos eventos ocorrer.
Quando crescido selvagem e distante (Arthur de Oliveira, 10min – Emirados Árabes Unidos)
Sinopse: Um idoso, com problemas de audição, recebe a visita de seu neto – que passará o dia na casa do avô onde ambos transitam entre a rebeldia e a nostalgia.
Águas Vermelhas (Luane Costa, 2min 2020 – Canadá)
Sinopse: Um dia de piscina e um pesadelo que se torna real.