2º FESTCiMM | Mostra Nacional

2º FESTCiMM - Mostra Nacional

2º FESTCiMM | Mostra Nacional | Críticas

Os oito curtas da programação do 2º FESTCiMM | Mostra Nacional retomam por vezes a questão da idade. Nos faz perguntar os motivos por esse assunto ser cada vez mais comum em obras tanto do cinema nacional quanto internacional. Talvez uma consciência de que a vida dos mais velhos passa por abandono e desinteresse dos mais novos. Ou pela certeza de que a debilitação física e mental se agrava pela falta de apoio da sociedade e pelas dificuldades financeiras que fatalmente uma vida economicamente inativa provoca. Só que a sessão transitou por outros temas e falaremos de todos agora. Não deixem de acompanhar a cobertura completa do Festival nesse link. Segue um índice que nos leva diretamente ao filme em questão:

Leonardo Batsião, o poeta analfabeto
Riscados pela memória
O homem que ri
Nuvem negra
Um mal a cada dia
Soccer Boys
Vinde como Estais
A Vida dentro de um melão

Leonardo Batsião, o Poeta Analfabeto
(Jefferson Sousa, 2019)

O 2º FESTCiMM | Mostra Nacional se inicia com o curta-metragem mais extenso da seleção. O personagem-título do documentário é um senhor, morador de Itapetim (Pernambuco) que, a despeito da falta de estudos, é um grande poeta. Usando o cotidiano como objeto de suas obras, surge logo na primeira sequência narrando a força do juazeiro, árvore que – de tão resistente à seca – virou nome de cidade no Ceará. “Leonardo Bastião, o Poeta Analfabeto” é resultado de mais de dez anos de imagens do artista. Desde 2008 seus poemas são filmados e publicados no YouTube, trazendo uma fama incomum.

Um típico aluno da chamada Escola da Vida, Leonardo é mostrado pelo cineasta Jefferson Sousa como um homem insatisfeito com a degeneração de sua memória. Montado a partir de entrevistas dos anos de 2017 e 2019, ele lamenta não poder mais versar como antes por conta da terrível doença “em que um não entende o outro”. O diretor foge da poética como linguagem de sua própria obra e aposta em um didatismo que traz historiadores e professores – que chegam a dar uma pequena aula de métrica. Ao mesmo tempo que desperta interesse por se descobrir tanto sob o aspecto temporal quanto territorial o surgimento dos poetas analfabetos baseados totalmente na oralidade, há momentos em que o ar professoral cansa o espectador. Como amante da escrita, eterno insatisfeito, aproveitei mais os momentos como aquele em que o protagonista fala que “fazer verso é fácil, difícil é prestar”.

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Riscados pela Memória
(Alex Vidigal, 2018)

Riscados pela Memória” de Alex Vidigal conta com a presença sempre magnética de Antônio Pitanga. Aqui ele é um dono de um sebo de discos de vinil e algumas revistas e que passa o dia à espera dos minguados clientes. A maioria quando entra na loja tem mais interesse em vender do que comprar. O curta-metragem foca na interação com uma mulher que deseja vender o LP de seu pai enquanto a filha quer mexer em tudo o que lhe interessa.

Os minutos iniciais quase aproximam a obra do slow movie, com o velho compondo a unidade fílmica quase que da mesma forma que os objetos antigos. Aos poucos a narrativa vai pelo caminho da dificuldade que nós temos de nos desapegar de bens que nos provocam lembranças, mesmo que sejam comprovadamente inúteis. Belos diálogos metafóricos sobre as marcas da vida e do tempo a partir dos arranhões dos discos e algumas conexões implícitas, tornam o filme um bom rito de passagem para obras mais provocativas que estavam por vir na sessão.

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O Homem que Ri
(Rose Panet, 2019)

Chamando a atenção logo na primeira cena por se valer das salas de cinema do Cine Lume, local de resistência cultural de São Luís, no Maranhão, “O Homem que Ri” da jovem antropóloga Rose Panet dialoga um pouco com “Matinê”, curta-metragem assistido na Mostra Internacional do FestCiMM. Partindo de um ataque homofóbico a um homem negro, aplica tanto o conceito de “filme dentro do filme” quanto a menção ao Mito da Caverna que a obra mexicana o faz. Só que Panet ambienta as ações na sala de cinema para praticar um exercício (que merece ser cada vez mais constante) de revisitação das falas de Jair Bolsonaro ao longo de sua vida como parlamentar e no início de sua candidatura à Presidência da República.

Traçando um paralelo com outro levante supremacista branco, ocorrido na Alemanha há quase cem anos, a montagem nos provoca com a adição de claques de comédia em momentos como a esdrúxula (e errada) utilização de chocolates do ex-Ministro da Educação Arthur Weintraub para justificar o desmonte das instituições públicas de ensino. Por fim, nos leva a perguntar: como seria a experiência coletiva de assistir a uma transmissão ao vivo ou entrevista de Bolsonaro? Provavelmente, muitos daqueles que flertam com o fascismo em sua consciência ficariam quase tão constrangidos quanto alguns dos personagem do curta-metragem.

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Nuvem Negra
(Flávio Andrade, 2018)

Em 2019, “Nuvem Negra” passou por festivais importantes dentro do nicho ao qual se propõe, como o Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro e o Festival Taguatinga de Cinema. Ser estrelado por Jean-Claude Bernardet já provoca o suficiente, mas o cineasta Flávio Andrade vai além. Compõe uma obra que traz de forma incisiva um dos grandes problemas da sociedade – principalmente dentro do núcleo familiar.

O curta-metragem traz um senhor que não possui mais voz durante o jantar de sua família. Reflexo de um mundo em que muito se fala (e come) e pouco se ouve (e vê). O diretor expressa isso transitando entre as imagens do velho perdido à mesa e planos-detalhes da comida e das bocas. É o clássico sentimento de solidão no meio da multidão. Só que ali estão as pessoas mais próximas de sua família. Elas que, afinadas no discurso, não enxerga um palmo diante do nariz. Um homem enche a boca para falar sobe depressão e não consegue identificar um sintomático ao seu lado.

Depois de ser auto-destrutivo, o protagonista tenta um outra cartada. Aquela que muitos se valem para serem vistos: desenvolver uma performance. É a maneira como ele imagina a morte, se agarrando nessa saída triunfante para aguentar o jantar até o final.

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Um Mal a Cada Dia
(Ricardo Augusto, 2020)

Ricardo Augusto segue em “Um Mal a Cada Dia” um caminho tematicamente diverso de boa parte das obras da sessão. Traz uma narrativa simples e linear para provocar o debate acerca das dificuldades de ser mãe solo em um lugar como São Paulo. Como forma de agradar a filha, adota para ela um cachorro. A partir do estranhamento da má recepção do presente pela menina, faz pensar que nem a mais inocente criança 

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Soccer Boys
(Carlos Guilherme Vogel, 2018)

Realizado com apoio obtido em um edital do canal Futura, “Soccer Boys” é uma das obras mais curiosas do festival. Carlos Guilherme Vogel vai pelo caminho do documentário mais tradicional, com entrevistas e captação de imagens do cotidiano a ser mostrado, para contar a história de um time de futebol amador que nasceu do desejo de alguns homens gays – alguns deles que deixaram de ser profissionais pelo preconceito gritante desse esporte – em ter uma rotina de jogos.

Assim nasceu o Bees Cats Soccer Boys, feito para ressignificar uma atividade que se vale até hoje de um ambiente não apenas agressivo como extremamente intolerante. A demanda por um futebol anti-homofóbico é tão grande que o que parecia ser uma reunião de amigos para jogar despretensiosamente se tornou uma liga com quase quarenta times. Os depoimentos nos fazem refletir sobre, até hoje, existir a necessidade de ter um espaço próprio para atletas homossexuais praticarem seu esporte – e emociona a visão romântica de alguns deles, que entendem que essa organização possui prazo de validade e que daqui a alguns anos o futebol será apenas um – e para todos. Batalhas vêm sendo conquistadas, como a capa que a Sports Illustrated deu à brasileira Valentina Sampaio, a primeira mulher trans a figurar nesse posto na história da publicação.

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Vinde como Estais
(Rafael Ribeiro e Galba Gogóia, 2019)

Depois de ser selecionado para o Festival Visões Periféricas de 2019, o curta-metragem “Vinde como Estais” de Rafael Ribeiro e Galga Gogóia mostra que a desocupação de espaços não se limita somente a ambientes abertamente hostis a quem não comunga da heteronormatividade. Até mesmo no mundo das artes, como no teatro, a representatividade trans é pouco vista. Pensando nisso, Kit Redstone escreve uma peça que parte de sua experiência tendo como mote a primeira vez em que frequentou um vestiário masculino.

Convidado para participar do Women of the World de 2018, que ocorreu no Boulevard Olímpico no Rio de Janeiro, ele decide encenar uma versão brasileira da peça – mesmo sem falar nada de português. A obra não se limita a falar da inexistência da barreira linguística quando arte feita com amor está em questão. A exibição de corpos trans durante o casting e em exercícios de atuação é um verdadeiro convite a ocupação de espaço.

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A Vida Dentro de um Melão
(Helena Frade, 2020)

O curta que encerra o 2º FESTCiMM | Mostra Nacional é “A Vida Dentro de um Melão“, de Helena Frade. Após transitar por temas duros, essa narrativa que usa fantoches é uma maneira singela de retomar ao debate familiar. Aos poucos, a cineasta vai compondo as cenas com imagens reais, fotos e até capturas do Google Street View. Uma visão muito particular de se imaginar as representações de família e de casa, na busca pelo que lhe toca como pertencimento.

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Ficha Técnica da Sessão
2º FESTCiMM | Mostra Nacional (Edição Garanhuns)

Leonardo Batsião, o poeta analfabeto (Jefferson Sousa, 22min – 2019)
Sinopse: Na zona rural da pequena cidade de Itapetim, no interior de Pernambuco, Leonardo Bastião vive, um poeta que nunca aprendeu a ler e escrever, mas que construiu através de sua poesia popular um incrível universo cultural sobre a conectividade de as pessoas de uma região semiárida com natureza e deus. Depois de quase sete décadas de anonimato, os vídeos de Leonardo declamando seus versos alcançaram milhões de visualizações na internet e até geraram um livro transcrito pelos fãs. Em 2019, aos 74 anos, Leonardo reflete sobre a vida, a natureza e o passado, enquanto estudiosos da cultura popular tentam explicar o fenômeno midiático e linguístico que é sua vida e obra.
Riscados pela memória (Alex Vidigal, 20min – 2018)
Sinopse: O dono de um sebo de discos, em meio a uma compra de LPs de segunda mão, se depara com algo que vai muito além de uma aquisição trivial.
O homem que ri (Rose Panet, 11 min – 2019)
Sinopse: Dois personagens de filmes diferentes caem da tela do cinema. À partir daí travam um diálogo questionando o passado, o presente e o futuro numa relação com a consciência política, a reação cidadã do homem que não vê ou só vê o que quer e assim prefere apenas rir.
Nuvem Negra (Flávio Andrade, 15 min – 2018)
Sinopse: “Era apenas o velho na mesa de jantar sentado como se um cansaço glacial o dominasse completamente …” NUVEM NEGRA (NUVEM NEGRA) é a história de um homem comum. Cercado por sua família, seus desejos, sua memória. Inspirado na história “O Instante da Nuvem Negra”, do escritor Bruno Liberal.
Um mal a cada dia (Ricardo Augusto, 15min, 2020)
Sinopse: Em uma pequena casa alugada nos arredores de São Paulo, Aline e Andreia, mãe e filha, vivem em constante luta para sobreviver. Para aumentar o ânimo da filha, Aline leva para casa um filhote de rua, mas a falta de entusiasmo com o novo cachorro traz à tona algumas questões sobre o passado da família.
Soccer Boys (Carlos Guilherme Vogel, 15min, 2018)
Sinopse: Enquanto se preparam para disputar a Taça da Diversidade, os jogadores do Beescats Soccer Boys discutem questões importantes com relação à homossexualidade no futebol e a homofo- bia na sociedade contemporânea.
Vinde como Estais (Rafael Ribeiro e Galba Gogóia, 15mim – 2019)
Sinopse: Em um clima pós-eleições, Kit Redstone desembarca na devastada Cidade Olímpica, Rio de Janeiro. Escritor, diretor e performer teatral radicado em Londres, Kit é um homem transgênero e vem ao Brasil com o objetivo de produzir uma peça teatral com atores transexuais no país que mais mata travestis do mundo. Durante o processo, conhecemos esses artistas e suas perspectivas sobre como é ser LGBTQI+ e artista em um cenário apocalíptico para as minorias sociais e produtores de cultura no país.
A Vida dentro de um melão (Helena Frade, 18min – 2020)
Sinopse: Uma garota filma o seu redor. Fantasiada de bicho, o desconhecido te assopra quando o coração quer voar.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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