2º FESTCiMM | Nossa Mostra

2º FESTCiMM - Nossa Mostra

Os oito curtas da programação do 2º FESTCiMM | Nossa Mostra trouxeram o chamado “Cinema Instantâneo” curiosa e interessante denominação das produtoras independentes de Pernambuco, como o Coletivo Cine Agreste, a Toco Filmes e a Araweté Filmes. Fora de competição, eles ampliam as questões regionalistas do festival, sem deixar de dialogar com o mais urgente na sociedade – por isso a instantaneidade rotulada. Obras que somente no formato de produção e distribuição tal qual se observou na mostra faz com que cumpre seu objetivo. Falaremos um pouco de cada uma delas. Não deixem de acompanhar a cobertura completa do Festival nesse link. Segue um índice que nos leva diretamente ao filme em questão:

Desconserto
Penumbra cinzenta
Reinado imaginário
Remoinho
Mammon
O caminho das águas
Dos filhos deste solo

Desconserto
(Haniel Lucena,  2020)

O 2º FESTCiMM | Nossa Mostra se inicia com “Desconserto”, de Haniel Lucena. O regionalismo óbvio na fotografia, ressalta pela escolha dos planos, abre espaço para uma camada bem mais universalista. Há na narrativa uma simplicidade a partir da observação. Vemos por uma janela uma menina brincar, com o que há ao seu alcance. Estamos dentro da casa e ela, fora. Passada essa introdução, o cineasta parece querer fixar sua obra em um fragmento de existência, como se a escolha fosse aleatória. Mas não é – mesmo que a protagonista não saiba disso. Ela parece viver mais um dia de sua infância, mas o espectador sabe que em paralelo momentos fundamentais na sua vida, que sem dúvida gerarão consequências (para não dizer traumas) ocorrem em outro ponto. Não há o suspense da consciência do público em oposição ao desconhecimento da personagem. O que há no curta-metragem de abertura é uma apreensão, um desespero pelo que não se vê. No momento pela menina, mas quando os créditos sobem, por nós mesmos.

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Penumbra Cinzenta
(Lucas Marinho, 2020)

Penumbra Cinzenta” de Lucas Marinho se vale de “Canto para a Minha Morte” de Raul Seixas para cuidar de duas premissas: o arrependimento dos atos e o sentimento de ser sufocado pela própria existência. Na obra eles correm em conjunto, tornando a canção do saudoso roqueiro baiano (algo como um tango) perfeito para a criação do clímax.

O cineasta nos transporta a Diadema, em São Paulo, com exploração direta da violência urbana. A princípio, uma notícia a ser tratada com indiferença por quem ouve o rádio ou assiste a TV todas as manhãs. Só que por trás de toda e qualquer tragédia urbana há vítimas reais, familiares em sofrimento. O que “HellCife – Até Quando?” provoca em alguns segundos, usando a animação como gênero – “Penumbra Cinzenta” amplia com uma carga dramática extremamente forte.

Passamos a vida toda tentando captar o momento em que antecede a morte – e a música de Raul talvez tente nos responder a uma pergunta que não temos como saber antes de nossa hora chegar. Assim como o protagonista de “Nuvem Negra” vislumbra o ode a si mesmo, uma saída de cena inesquecível – aqui o protagonista quer explorar as marginalidades que lhe cabem até o último segundo.

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Reinado Imaginário
(Hipólito Lucena, 2020)

Vivendo em um país com chagas da colonização abertas (sem qualquer pretensão de curá-las, eis que ainda temos informalmente Príncipe) Hipólito Lucena quer em seu “Reinado Imaginário” usar os vocábulos a favor de uma crítica debochada. Em Pernambuco há um Rei, o do Baião, Luiz Gonzaga. É com “Asa Branca“, sua obra maior, que o curta-metragem transita pelo espaço urbano mostrando toda a nossa realeza.

Seja o Rei dos Sucos, o Rei dos Salgados, o Rei da Miudeza, somos um povo que ainda associa qualidade à linhagem. Menos mal que fomos nos apropriando desses título, a ponto de uma obra que parte de um experimentalismo como a de Lucena não deixar carente de interpretação o espectador-médio.

É com outro pernambucano ilustre, Geraldo Azevedo, que a obra confronta “La Belle de Jour” com um monumento bem tacanho com os três pilares da Revolução Francesa. Um debate sobre em qual sociedade estamos e para onde caminhos. Há muito se guilhotinaram em nome de liberdade, igualdade e fraternidade, mas até agora o povo não recebeu a parte que lhe cabe desse latifúndio.

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Remoinho
(Tiago A. Neves, 2020)

Remoinho” de Tiago A. Neves usa o território do “meio do mundo” para contar a clássica história de busca por raízes, por ancestralidade. Parte de um deslocamento muito comum: a visita a parentes no interior. A mãe trata o passeio com um certo exotismo na sequência inicial, como se quisesse repelir do filho qualquer impulso de identificação. Depois, o espectador começa a entender que, na verdade, não há repulsa e sim pendências emocionais em relação àquele espaço. Conforme as lembranças – a partir da casa e de objetos – ganham corpo, o curta-metragem justifica sua seleção para a Mostra de Tiradentes deste ano. Aplica as premissas e objetivos que o audiovisual brasileiro, principalmente o dos festivais que tem a representatividade como mote, de maneira torná-lo um potencial selecionado ou vencedor de festivais.

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Mammon
(Lucas Marinho, 2018)

Se a ideia da obra anterior era a entrega de uma produção com potencial para transitar em festivais, “Mammon”, de Lucas Marinho, aprofunda esse entendimento. Trata-se de um dos filmes de maior qualidade técnica dentre os brasileiros do 2º FESTCiMM | Nossa Mostra. Se valendo de drones, CGI e uma cara mais de cinemão, usando a contemplação e o forte apelo visual. Explorando de forma devagar a relação de um casal, aplica os elementos conhecidos do surrealismos para nos transportar para o mundo dos sonhos. No caso, o sonho é a vida melhor para a família do protagonista. Do regionalismo, a preocupação com a adição de objetos culturais como os trajes das personagens e a representação do diabo. Feita para viajar, é um curta-metragem que tende a durar no circuito por encontrar com mais facilidade o público ao qual se destina.

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O Caminho das Águas
(Antônio Fargoni, 2019)

O Caminho das Águas“, de Antônio Fargoni, dialoga muita com o curta-metragem “Vidas Cinzas” (2017). Em 2029, nos mostra um mundo em que não podemos mais enxergar as cores – culpa do Capitão detentor do poder, que determinou que apenas sua residência receberia abastecimento de água. Ao falar da “saudade de outro Capitão”, de nome Virgulino Ferreira da Silva, nos faz pensar como seria um encontro da distopia criada por Leonardo Martinelli com a ideia de justiça social explorada por Kleber Mendonça Filho em “Bacurau” (2019).

Porém, Fargoni não limite sua obra a essa narrativa e insere de forma paralela o documentário de um dono de caminhão-pipa, um homem que, teoricamente, nunca passaria dificuldades no sertão brasileiro. Apesar de ser um negócio que nunca entra em crise, a projeção de futuro – até para ele – não é positiva. Se no curta-metragem somos apresentados a uma mulher indignada com a situação esdrúxula, mas que – costurada a partir de um processo de perda de direitos – se torna plenamente possível em uma sociedade anestesiada como a brasileira.

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Dos Filhos Deste Solo és Mãe
(Antônio Fargoni, 2019)

Encerrando a sessão do 2º FESTCiMM | Nossa Mostra, o outro curta-metragem de Antônio Fargoni, que se descreve como a gênese do Brasil, é o exemplo do sincretismo da nação. Usando um trecho do Hino Nacional, que ignora os povos originários, “Dos Filhos Deste Solo és Mãe” se inicia com uma temática indígena para inserir os elementos colonizantes do território: do terço ao espelho, as maneiras mais rudimentares de opressão. Usando pontos de Oxóssi com os versos da Ave-Maria, o filme tenta em sua montagem entender o que nós somos.

A ancestralidade da terra, curiosamente, não está enquadrada em nenhum momento por Fargoni. Encontramos nossas referências a partir dos sons – e nunca visualmente. Essa perspectiva de olhar de um colonizado, mas inserido no contexto da contemporaneidade (com direito à adição de um dos grande profetas dos últimos anos, Belchior), nos perturba porque não nos revela quem ali está. Não sentimos em nenhum momento que aquele olhar possa ser nosso – é quase como se me negasse o pertencimento da ancestralidade da terra. Só que o cineasta não expõe o protagonista, aumentando essa perturbação à luz da incerteza.

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Ficha Técnica da Sessão
2º FESTCiMM | Nossa Mostra (Edição Garanhuns)

Desconserto (Haniel Lucena, 7min – 2020)
Sinopse: Uma menina brinca com seu carrinho velho, sem saber que um momento crucial de sua infância acaba de ocorrer.
Penumbra Cinzenta (Lucas Marinho, 9min – 2020)
Sinopse: Qual será a sensação da morte?” Um homem perturbado pela angústia e culpa, sente que não pode escapar da verdade que exige que ele derrame o seu próprio sangue.
Reinado Imaginário (Hipólito Lucena, 9min – 2020)
Sinopse: Uma viagem no imaginário coletivo, em busca de respostas para a ideia de sustentação aos princípios da monarquia, vivo nos espaços imagéticos das cidades.
Remoinho (Tiago A. Neves, 12min – 2020)
Sinopse: Após um longo período de afastamento, Maria retorna à casa de sua mãe. Ela está decidida sair do remoinho que a fez voltar.
Mammon (Lucas Marinho, 25min – 2018)
Sinopse: Entre sonhos e crenças, numa terra castigada pelo sol, no interior de Pernambuco, Assis precisa enfrentar seus fantasmas para da uma vida melhor para sua família.
O Caminho das Águas (Antônio Fargoni, 9min – 2019)
Sinopse: No agreste pernambucano, uma cidadã resolve reivindicar os seus direitos.
Dos Filhos Deste Solo és Mãe (Atônio Fargoni, 10min, 2019)
Sinopse: Gênese do Brasil

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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