Relíquia Macabra

Relíquia Macabra Filme Crítica Pôster

Sinopse: Em “Relíquia Macabra”, quando a velha mãe Edna inexplicavelmente some, cabe à filha Kay e à neta Sam viajar para a decrépita casa de campo da família para encontrar pistas de sua demência espalhadas pela casa.
Direção: Natalie Erika James
Título Original: Relic (2020)
Gênero: Terror | Drama | Mistério
Duração: 1h 29min
País: Austrália | EUA

Relíquia Macabra Filme Crítica Imagem

(Vetiti) Panis Et Circenses

Sem a chance de ser assistido em uma sala de cinema, “Relíquia Macabra” sai do ineditismo no Brasil com sua estreia esta semana na plataforma de streaming do Telecine. Um terror que explora bem mais as percepções do público a partir do drama das três personagens, três gerações da mesma família. Deve deixar carentes aqueles que procuram o escapismo dos bons sustos ou das representações escatológicas e fantasiosas usando o sobrenatural como premissa. Porém, por trás da desculpa para assistir ao filme, há uma forma eficiente de trazer algumas questões cada vez mais perenes na sociedade moderna.

Se você chegou na Apostila de Cinema em busca de um debate mais técnico ou valorativo sobre os filmes, sinto dizer que fugimos (quase sempre) dessas abordagens. A ideia aqui é pensar valores e características que vinculam as produções aos territórios, comunidades e pessoas a elas envolvidas. Acaba nos despertando bem mais uma narrativa como a de Natalie Erika James (diretora e roteirista ao lado de Christian White), estreante em longas-metragens, do que viagens envolventes pelo horror sem tanta substância. Mesmo assim, qualquer elogio à obra precisa reiterar que há um busca pelo anticlímax, que pode tornar menos óbvias certas conclusões, mas deixa, com suas escolhas, um gosto de vazio para parte do público.

São três possíveis focos na trama e é interessante como a relação direta do espectador deverá fixar o olhar sobre uma das protagonistas. Em “Relíquia Macabra” temos Edna (Robyn Nevin), uma senhora de quase oitenta anos que mora em um casarão no interior. Seus vizinhos se preocupam porque não veem a mulher há alguns dias e entram em contato com Kay (Emily Mortimer) e Sam (Bella Heathcote), filha e neta – que irão ao local para descobrir o que aconteceu. Não sei se o vínculo afetivo acabou se gerando pelo recorte geracional, mas enquanto pessoa de meia-idade, tendi a observar mais os passos de Kay e seus laços com as outras personagens.

Isto porque Mortimer vive a representante de uma geração que falhou socialmente, consequência direta das mudanças das dinâmicas da sociedade, principalmente envolvendo as relações de emprego e com seu território. Obrigados a ocupar o mercado de trabalho de forma selvagem, serem competitivas sobre todos os aspectos, estas pessoas não conseguiram agir como ponte entre aqueles que vieram antes e o que vieram depois. Há fragilidade na maneira como Kay se coloca, tanto perante Edna quanto perante Sam, um ruptura familiar que faz a conta chegar algum dia. Isto fica claro nos diálogos iniciais, em que ela descobre tardiamente que sua filha trancou o curso da faculdade e começou a trabalhar em um bar. Também se destaca o registro que ela faz junto à polícia de que não falava com sua mãe há “algumas semanas”. Sempre com a desculpa de que estava atolada de compromissos.

Porém, este comportamento precisou mudar porque ela se viu diante de uma ferida a ser estancada. Uma ferida real, quando sua mãe retorna com um grande machucado no peito, sem dizer onde estava e com sinais flagrantes de perda de memória e senilidade. Kay, então, se estabelece na casa junto a Sam e um pequeno embate surge: enquanto a mãe começa a se movimentar para transferir Edna para um asilo, a filha acredita que a atenção e o carinho serão capazes de manter sua avó bem. Cogita, inclusive, se transferir de vez para as proximidades da mansão. Todas elas terão que encarar as atitudes aterrorizantes de uma senhora que não tem mais o controle de si. Em “Hereditário” (2018), o diretor Ari Aster conseguiu trazer essas dinâmicas familiares para o centro da obra, entregando plasticamente bem mais do que Natalie Erika James. Isso não torna nenhum dos filmes melhor ou pior do que o outro. São abordagens diferentes, talvez até complementares.

Contudo, sugerimos que sigam neste texto apenas quem já assistiu “Relíquia Macabra” ou não se importa com revelações sobre o enredo – já que entraremos no terreno dos spoilers, por ser impossível falar mais sem estragar a experiência.

A ideia da cineasta de trazer a perda de memória e de afeto como grande demônio traz à obra um poder capaz de superar a carga baixa de tensão, o que ainda pode frustrar muitas pessoas. Assistimos Kay não funcionar enquanto elo, já Edna e Sam não acreditam em suas palavras. Cada uma tem seus dramas, mas a lógica é a da inevitável chegada da morte e a velha sentença: seremos pais dos nossos pais e filhos dos nossos filhos enquanto curso natural da vida. O dilema aqui é saber em que momento a ideia de que buscar tratamentos ou terceirizar cuidados é uma espécie de abandono afetivo inverso.

Algo que os dramas fazem com certa frequência em uma sociedade cada vez mais envelhecida. Um grande exemplo foi “Meu Pai” (2020), sucesso na temporada de premiações deste ano. A comédia também, acaba usando as piadas potenciais envolvendo esquecimento e situações constrangedoras para – quase sempre com graves problemas de representação – tentar amenizar esta situação.

O acerto de “Relíquia Macabra” é não explorar tanto a estética demoníaca em metáforas forçadas, até mesmo vazias. Confesso que tive mais medo do risco de uma conclusão assim, atravessada, que faria de Edna uma versão sênior de Regan (Linda Blair), protagonista de “O Exorcista” (1973). Essa maneira plástica de suscitar debates também tem seu valor, mas soa cansada, óbvia e em uma produção sem grandes nomes e orçamentos, faz com que nossa atenção se concentre mais na forma do que no que conteúdo.

O horror a partir do esquecimento, o demônio que faz Edna devorar suas fotos e, principalmente, uma conclusão que surge como uma passagem de bastão, com Kay revelando o primeiro sintoma, parece mais marcante do que um punhado de sequências genéricas. O uso de efeitos sonoros como ferro contorcido e madeira rangendo para simular a perda sensorial foi um dos expedientes que a diretora admite ter usado como forte elemento. Até o clímax, que vai transformando a senhora em uma espécie de feto queimado, perdendo todas as características que a tornam humana e única, se torna mais provocadora, à luz da forma como Natalie Erika James constrói sua narrativa.

Ou seja, na sala de jantar, com as pessoas preocupadas em (como) nascer e morrer – fugindo do esquema de ser muito circo para pouco pão. Quando Sam desiste e diz que aquilo “não é mais a minha avó”, Kay entende que Edna será, para sempre a sua mãe – mesmo irreconhecível e descaracterizada. Uma verdadeira “Relíquia Macabra” enquanto mensagem que o jovem terror australiano nos deixa.

Veja o Trailer:

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

3 Comments

  1. Eu assisti esse filme ontem (30/5/2021) e entrei hoje no Google em busca de postagens que me levassem a ter certeza do que entendi. E Bingo! Acho que estava certeza. Não o vi como um filme de terror, mas um filme de reflexão. Impressionei-me com a cena em que a Edna come as fotos, como se quisesse manter dentro dela os momentos e as pessoas. Não sei o que minha fala irá gerar nos que a lerem, mas gostei do filme e refleti muito sobre ele.

    1. Obrigado pelo comentário, Vânia! Sim, eu gostei bastante do que ele permite refletir, nos mantém envolvidos sobre o que pode acontecer, mas já nos provoca a pensar sobre várias questões ao longo dele – e não apenas como uma mensagem final. Foi até um pouco surpreendente, não esperava tanto.

  2. acabei de assistir pelo Tele cine top de Portugal. Ao meu lado estava uma senhora que mora conosco. Ela ama filmes de terror e ficou com o entendimento superficial. Viu Edna como uma entidade que habitava a casa. Já meu entendimento foi exatamente o mesmo do comentário anterior. Tenho mãe com 80 anos. Somente em momentos onde minha mãe está com problemas sérios posso me aproximar e embalá-la da mesma forma como Kay fez com Edna.
    A verossimilhança entre nossos afetos e os afetos revelados no filme são inegáveis. Parabéns..
    Recomendo.

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