Leia a crítica de “Elvis”, destaque na HBO Max.
Sinopse: A história de vida de Elvis Presley vista através do relacionamento complicado com seu empresário enigmático, o coronel Tom Parker.
Direção: Baz Luhrmann
Título Original: Elvis (2022)
Gênero: Drama | Musical | Biografia
Duração: 2h 39min
País: Austrália | EUA
O Homem que Desistiu de Sonhar
Goste ou não do cinema de Baz Luhrmann, é difícil discordar de quem aponta no cineasta australiano fortes traços de autoria. À exceção de seu filme de estreia, “Vem Dançar Comigo” (1992) – e mesmo assim ainda que parcialmente – e o tiro n’água do caça-Oscar “Austrália” (2008), os outros quatro longas-metragens do diretor possuem dinâmica, proposta estética e composição de trilha e imagens que se assemelham. Tanto ao ponto de imaginarmos uma narrativa clássica de Shakespeare, um romance no apagar das luzes do século XIX e uma releitura da história mais famosa de F. Scott Fitzgerald passada na Nova Iorque dos 1920 como parte de um mesmo universo. O universo luhrmanniano. Com “Elvis“, em desenvolvimento desde 2014 e que estreou nos cinemas brasileiros na semana do tal do Dia do Rock, não foi diferente.
Essas informações podem ser fundamentais para sua relação pessoal com esta biografia vendida como “diferente” de Elvis Presley (Austin Butler). Sem abdicar da linearidade temporal e da escolha de momentos-chaves da trajetória do artista, a obra divide o protagonismo entre o cantor de maior sucesso de todos os tempos e seu empresário (e sombra) Tom Parker (Tom Hanks). Vendido como um coronel da reserva que passou a investir em novos talentos, ele conhece Elvis em uma espécie de quermesse no interior do Tennessee. Antes que isso chegue a nós, um senhor moribundo começa a narrar seu passado revelando o peso da culpa (para alguns) de ter matado a galinha dos ovos de ouro (dele) ou a estrela de maior grandeza que os palcos de Las Vegas já viu passar.
Desta forma, “Elvis” aplica com grande peso, sim, o olhar de seu realizador. Na verdade, se vale da forma, do modus operandi. A mistura do clássico e do contemporâneo como premissa da trilha sonora está lá, por exemplo. É aqui que a trajetória de Presley se transforma em algo além da sua vida e obra. Luhrmann carrega a narrativa com um conjunto de referências, tanto das influências sobre o trabalho de Elvis (em som e imagem) quanto o legado dele na música norte-americana (apenas em som). Uma pedra no sapato de quem busca o didatismo e a junção da abordagem documental com boas caracterizações de atores. Algo que a cinematografia das últimas décadas faz como uma fórmula. Poderíamos cintar dezenas de obras, de “Tina” (1993) a “Bohemian Rhapsody” (2019), passando por “Ray” (2004).
Por outro lado, o longa-metragem está longe de anarquizar esta biografia. Escolhe como pontos centrais da trama o boicote da mídia dos Estados Unidos às apresentações do cantor na TV na década de 1950 – resultado da pressão do conservadorismo – além do especial “Comeback” de 1968 e da residência fatal em Las Vegas. Encontra formas de identificação para que o público não confunda a dinâmica de Baz com perda de foco. Se vale de algumas das canções mais famosas para dissecar as referências, do blues ao hip hop. Ao mesmo tempo em que não frustra quem paga o ingresso “apenas” para assistir “à história do Elvis”.
Para isso conta com grandes trabalhos de Butler e de Hanks. As primeiras reações registraram que, depois de tanto tempo sendo vendido como o queridinho da América, seria impossível extrair raiva e desprezo por um personagem com o rosto de Tom. Seu Coronel Parker é um vilão com atos condenáveis e que, usurpando para si até mesmo a narrativa do filme, insiste em criar contrapontos e argumentos que o inocentem. Toda vez que percebe que não irá conseguir, assume que a grandeza de Elvis é algo insuperável – mas, mesmo assim, tenta tirar para si boa parte dos créditos de cada sucesso.
O que o cineasta faz é criar pequenos afastamentos dessa espinha dorsal da trama criada pelo olhar do empresário. Usando uma estética que já é característica de suas obras, faz transições que se misturam com a trilha mixada. Artificializa e aumenta a velocidade de closes em sequências que nos transportam para outros espaços, aqueles que Parker parece incapaz de acessar. Um homem que era uma verdadeira fraude e que quase transformou Elvis em uma marionete por completo. Todas as vezes em que o Rei do Rock escapava da lógica do seu agente, este conseguia retomar as rédeas de maneira implacável. No Brasil, o atual imbróglio entre o fenômeno midiático Luva de Pedreiro colocou holofotes mais uma vez sobre a relação de parceira ou dependência entre celebridades que explodem e precisam de um agente por trás organizando sua vida.
Esses momentos menos tradicionais do filme podem ser os mais interessantes para alguns, ao mesmo tempo que pode tornar a obra um pouco enfadonha para outros. As leituras iniciais sobre “Elvis” mostram recepções polarizadas, típico de filmografias como a de Baz Luhrmann. Eu mesmo já alterei minhas percepções em obras como “Romeu + Julieta” (1996) e “O Grande Gatsby” (2013) com o passar dos tempos. A única certeza que tenho é que “Moulin Rouge – Amor em Vermelho” (2001) segue sendo um espetáculo mais de vinte anos após seu lançamento. Talvez a ficcionalidade e o ineditismo do roteiro dele ao lado de Craig Pearce (parceiro em todos os longas, à exceção de “Austrália”) tenho feito bem ao musical estrelado por Nicole Kidman.
A ideia de uma material pré-existente acaba gerando expectativas ou ideias pré-concebidas. Aqui, assim como o Coronel, o australiano faz uma aposta muito alta, quase um all-in em sua carreira – e dizem que há uma versão de quatro horas pronta para um futuro relançamento. Mexe na trajetória de um ícone, com sons e imagens enraizadas na memória de boa parte de nós. A ousadia de impor o seu ritmo frenético a uma biografia de Elvis Presley é louvável. Há cenas tão fragmentadas no corte rápido, que mal se percebe o uso de quase cem figurinos apenas pelo personagem principal. A maneira como aborda a branquitude e a forma como o rock se ergue como elemento de cooptação de público é um dos expedientes que evitam o anacronismo da abordagem festiva de biografias chapa-branca. Ainda que “Elvis” mostre o astro como uma vítima (e omita coisas como ele ter começado a namorar Priscilla Presley quando ela tinha 14 anos e ele 24, por exemplo).
Não me parece que a segregação da sociedade dos Estados Unidos e o racismo que se impôs na geração de cantores de blues que dividiram palco com ele surja de maneira atravessada. Dentro do espiral que a montagem do filme nos coloca, o espectador tem tempo para refletir e até mesmo transpor para sua realidade o que acontecia na época. Ainda hoje os norte-americanos se pautam em segregações, usam a desculpa capitalista de mercado nichado para manter os cidadãos conservadores em caixas preconceituosas que eles se negam a sair. Ainda usam a cooptação e a branquitude como arma de propaganda e o Eminem ser o rapper com maior número de discos vendidos na história não é algo casual ou deslocado dessa trajetória.
Em certo momento de “Elvis” sua história cruza com a de Michael Jackson, por exemplo. O Rei do Pop, ainda criança, iniciava uma série de shows no cassino concorrente quando Presley já não aguentava mais repetir a mesma apresentação. Naquele mesmo território, mais de trinta anos depois, Michael morreria na mesma Vegas, após o mesmo uso indiscriminado de morfina e em uma vã tentativa de resgate de sua carreira. Sem contar que, no seu percurso, viveria um breve casamento com a filha de Elvis, Lisa Marie Presley.
Há algo na maneira como Tom Parker imaginou seu pupilo que, de fato, marcou época. O empresário sempre identificou um potencial em receitas alternativas, que ultrapassassem a lógica das cifras oriundas de discos e shows. Aqui temos outra abordagem criativa de Luhrmann e que nos conecta com a própria história do Cinema. O Coronel via Elvis como mais uma atração de uma feira de variedades, a gênese da indústria do entretenimento. Quando ele aborda o jovem para se unir à sua caravana de artistas country, em uma licença poética na biografia de ambos, o Coronel parece ser o primeiro a entender a forma como o garoto se esforça para ser diferente enquanto algo vendável. O Cinema, enquanto arte, também começa a articular suas engrenagens quando pretende ir além dessas feiras de vaidades.
Presley foi único porque carregava consigo não apenas uma mistura de gospel, blues e country nas composições. Suas roupas, sua dança e seu cabelo eram parte de um pacote que o imortalizou. Parker, então, pensou maneiras de explorar merchandising a partir destes elementos. Alinhou o artista ao cinema e à TV com objetivos financeiros. Dava de ombros para todo o impacto cultural do cantor, aplicava o processo de midiatização com o simples intuito de gerar lucro. Nesta ganância residiu seu erro. Fatal para a vida de um e para a reputação do outro, que permanecerá para sempre com o nome manchado na história da música.
Ao final da sessão de “Elvis” duas coisas permaneceram na memória. A primeira é como a decadência de um astro é aplaudida de forma cruel pelos próprios fãs, desde que o show business tomou conta da maneira como consumimos arte. De Kurt Cobain e Amy Winehouse, chama a atenção como essa sanha por testemunhar o fracasso, de vangloriar-se por estar diante da fragilidade de um ser humano que não aguenta mais o peso do próprio talento. Por isso, ao longo de anos, milhares de pessoas compareciam semanalmente a Las Vegas para assistir à mais uma apresentação do Rei do Rock, por mais que seu corpo e sua voz pedissem socorro.
A segunda é a frustração do cantor pelas inúmeras maneiras como seu empresário freou o processo de internacionalização de sua turnê (que acabou virando uma residência). Algo que o filme dá conta de esmiuçar e esclarecer as motivações pelo lado de Parker. Um apátrida viciado em jogo que fez de Vegas a prisão do homem mais famoso do mundo. Um desgaste que fez com que, em uma das cenas finais, o rosto e a voz de Austin Butler, tão bem no papel de Elvis Presley, revelasse um milionário de quarenta anos que se sente incapaz de sonhar. Uma tragédia aos olhos de qualquer um. Um espetáculo pelo olhar de Baz Luhrmann.
Veja o Trailer: