Leia a crítica de “Pobres Criaturas”, em cartaz nos cinemas.
Sinopse: “Pobres Criaturas” narra a fantástica evolução de Bella Baxter (Emma Stone), uma jovem que é trazida de volta à vida pelo brilhante e pouco ortodoxo cientista Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). Sob a proteção de Baxter, Bella está ansiosa para aprender. Desejando conhecer mais sobre o mundo, Bella foge com Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado astuto e debochado, para uma aventura por vários continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella se firma em seu propósito de defender a igualdade e a libertação.
Direção: Yorgos Lanthimos
Título Original: Poor Things (2023)
Gênero: Drama | Comédia | Fantasia | Romance
Duração: 2h 21min
País: EUA | Irlanda | Reino Unido
Bella Belinhe
Chegando aos cinemas brasileiros cercado de expectativas (e já com onze indicações ao Oscar na bagagem), o novo longa-metragem do grego Yorgos Lanthimos, “Pobres Criaturas” é, sem dúvida, um dos grandes destaques da temporada de premiações. Antes de falar sobre o filme em si, talvez valha a pena refletir sobre os motivos pelos quais a obra agradará públicos dos mais diferentes perfis.
Para os adeptos do “cinemão” e menos entusiasmados com a pilhagem de sagas, franquias e criações family friendly dos últimos anos, a história de Bella Baxter (Emma Stone) reúne todos os ingredientes que faz com que essa plateia (que sempre manteve a Sétima Arte, em profunda crise, extremamente rentável) ir ao shopping em casos excepcionais como lançamentos de James Cameron ou Martin Scorsese. Uma produção carregada de elementos originais, uma narrativa não apenas envolvente mas que surpreende a cada nova fase da trama e que passa longe da infantilização do circuito comercial refundado pela Marvel (ironicamente, do mesmo conglomerado).
Em “Pobres Criaturas”, Lanthimos usa o sexo como parte importante da história e da experiência, uma ferramenta audiovisual quase em extinção (nas salas de shopping, então, é tão impactante a ponto do filme receber classificação +18). No mais, não há nada na obra que não remeta ao que se discute na sociedade contemporânea. Além do que, a estética de uma “distopia histórica” nos coloca em um passado ultra tecnológico nessa narrativa de estranhamento feita sob medida para um público que precisa reencontrar (ou conhecer) o Cinema para que possa salvá-lo. As primeiras impressões permitem prever que Bella Baxter será um ícone e possivelmente um dos papeis mais importantes da carreira de Stone, também creditada como produtora. O roteiro de Tony McNamara adapta um dos romances mais famosos do falecido autor britânico Alasdair Gray que adicionava forte carga de fantasia à trama.
Já para os adeptos do “cinema cult” (essa expressão está aposentada, uso aqui de maneira estereotipada propositalmente), o filme é o primo rico da produção que elevou Lanthimos a um cineasta de festival, capaz de gerar burburinho a cada novo lançamento. É justamente pelo uso do sexo que “Pobres Criaturas” nos remete a “Dente Canino” (2009) – no momento parte do catálogo da MUBI. Não me limito aqui ao quesito visualidade e sim pela função exercida pelo sexo nas obras. Assim como os filhos de cativeiro da produção grega vencedora da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2009 e indicado ao Oscar de filme internacional em 2011 , Bella também é movida pelo desejo e experiências sexuais.
No desenho da narrativa, a jornada da protagonista a levará a descobertas (e autodescobertas) e à utilização do prazer como moeda de troca, trampolim ou até (e somente) como prazer mesmo. No prólogo, ela é vista pulando de uma ponte, cena que se justificará mais adiante – e não como um clássico flashforward. Na introdução, somos apresentados ao Godwin Baxter (William Dafoe) um médico apresentado como um cosplay de Dr. Frankenstein. Em casa ele cria uma mulher que parece um bebê. E, de fato, ela é. Afinal, ele realizou um bem-sucedido (será?) transplante de cérebro e formatou a existência do corpo de Bella.
Emma Stone está no auge da carreira em “Pobres Criaturas”, não apenas pela coragem em se aliar ao projeto, mas na maneira como constrói Bella, que inicia o filme como um neném no corpo de uma moça. Curioso com a experiência de Godwin, seu aluno Max (Ramy Youssef) será um assistente no registro da evolução (e fique com essa palavra na cabeça). Para que tudo dê certo Dr. God (apelidado Deus), estabelece que sua filha não pode sair de casa. A rua é sinônimo de perigo, em uma proposta de confinamento permanente também parecida com a estrutura de “Dente Canino”.
Quando a fotografia em preto e branco é abandonada, Lanthimos nos apresenta o passado colorido de Bella. Aos poucos vamos tendo certeza do amor paternal de Godwin – e isso não significa que ele não faça mal àquela mulher. Também pensamos na culpa cristã que fez com que ele resgatasse uma jovem suicida embaixo de uma ponte para tentar revivê-la artificialmente, sob todos os riscos que isso gerou. É a partir da impossibilidade de freiar o ímpeto sexual que as rédeas começam a ser (re)tomadas por Bella. Com um cérebro que deseja se desenvolver mais rápido do que o padrão, para que possa finalmente acompanhar a idade do corpo que o habita, falta tempo para Bella possui consigo a sociabilidade, o que garante boa parte dos grandes momentos dessa fase inicial do filme.
Para citar um terceiro (e intermediário) grupo de espectadores que devem se apaixonar por “Pobres Criaturas”, podemos falar daqueles que conheceram a obra de Lanthimos com “O Lagosta” (2015) e principalmente com o Oscar bait anterior dele, “A Favorita” (2018), que a Netflix inseriu no catálogo na mesma semana do lançamento da segunda parceira dele com Stone. Isso porque, o diretor utiliza algumas ferramentas fundamentais para a narrativa de estranhamento gostosa da trama da Rainha Anne, que deu a estatueta de melhor atriz a Olivia Colman. Os zoom in e out abruptos, as lentes de olho-de-peixe e a trilha sonora cortante. Tudo isso se repete, mas de forma menos exagerada e, melhor, enriquecida com outros elementos (sobretudo visuais, já que estamos diante de uma fantasia).
Anne também nos pegava pela ausência de filtro social e pela maneira como utilizava a prazer (e a dor) como parte da exploração do poder. A diferença é que já conhecemos ela como detentora deste poder, ao contrário de Bella que precisa domar seus instintos, construir algumas relações e até descartar outras – temporária ou definitivamente. Quando mencionei mais acima que o longa-metragem se alinha com discussões contemporâneas, é muito porque seu protagonismo feminino é pautado por uma jornada de constantes aprisionamentos – o que também enriquece, mais uma vez, sua pedra fundamental na cinefilia “Dente Canino”.
Bella Baxter é uma mulher consciente dos seus desejos e precisa lutar contra o domínio de homens muito fragilizados. Seja Godwin, Max ou Duncan (Mark Ruffalo) que surge como um advogado que “negocia” uma viagem para Paris com o único objetivo de fazer a mulher esgotar o que seria uma revolta juvenil, “permitindo” que ela fizesse sexo o quanto achasse necessário para retornar ao lar como a filha e a noiva perfeita. É justamente nessa viagem, quando estão no navio, que podemos identificar formas de aprisionamentos menos literais e mais simbólicas. Acontece, por exemplo, quando Duncan atira todos os livros que Bella “ousa ler” no mar.
O que a trama nos apresenta é que quanto mais aprisionamentos, mais questionamentos são gerados na cabeça em evolução frenética de Bella. Falamos em acompanhamento da evolução parágrafos acima, mas a obra vai revelando que os homens que cercam Baxter querem evitar qualquer desenvolvimento que fuja do controle. Afinal, eles encontraram a mulher perfeita (filha, esposa, amante): aquela criada em laboratório e mantida em cativeiro.
Pois é nos constantes questionamentos que ela se descobre. Seu hiperdesenvolvimento talvez seja capaz de tornar os traumas do passado mais inteligíveis (e, por que não?, superáveis). Em um dos últimos aprisionamentos de uma história que é difícil falar sem dar spoilers (e acredito que esse texto precisa preservar boa parte da experiência de quem chegou aqui sem assistir), temos uma das formas mais cruéis: a que vincula corpo e memória.
“Pobres Criaturas” é sobre a maldição de ser mulher, sobre a fragilidade de um mundo construído e mantido por homens, sobre a pouca diferença entre prisão e a liberdade que não seja plena. Também é sobre os distanciamentos que não conseguimos pela permanência da memória e sobre um dos acertos de contas mais babadeiros do Cinema das últimas temporadas. É uma obra que não cairá no esquecimento depois da temporada de premiações. E é justamente no seu potencial avassalador de permanência que reside a urgência de assistí-lo.
Veja o trailer: