Sinopse: Paulo, um jornalista frustrado, se envolve com sua vizinha casada, Marina, enquanto lida com um emprego medíocre e bloqueio criativo. Em uma noite de embriaguez, ele grava uma carta de despedida repleta de amor e ódio em um cassete para ela, expondo seus demônios emocionais diante da câmera.
Direção: Roberta Ribas e Gustavo Machado
Título Original: A Voz que Resta (2024)
Gênero: Drama
Duração: 1h 26min
País: Brasil
Apoteose e Apocalipse
Lançado em fevereiro deste ano no circuito exibidor brasileiro, a produção nacional “A Voz que Resta” é uma transposição do monólogo escrito por Vadim Nikitin, dirigido e estrelado por Roberta Ribas e Gustavo Machado. A construção narrativa é direta, com uma proposta de história que coloca o público em uma situação-limite. Paulo (Gustavo Machado) é um homem em vias de tirar sua própria vida. Começa, então, a redigir uma carta a Marina (Roberta Ribas), sua amante. A partir da expressão de alguém à beira de um precipício, conheceremos um pouco da história dos dois – ou do que o protagonista regurgita como a história dos dois.
As primeiras imagens do filme são didáticas. A sombra desfocada de um casal se beijando, uma máquina de escrever prestes a ser usada, livros e discos meticulosamente bagunçados para apresentar a personagem. De Nina Simone a Wim Wenders, o que os realizadores pretendem é que coloquemos um olhar sobre o tal homem. Marina surge na fala de Paulo como alguém que tentou salvá-lo em mais de uma oportunidade. Ele cita “os três meses de malhação que você pagou”, como exemplo.
A mente perturbada de Paulo é a maneira de tornar “A Voz que Resta” igualmente perturbador. Ao mesmo tempo, uma vítima do alcoolismo e um stalker inveterado. Como não temos a voz de Marina, enquanto espectador as lacunas daquela relação precisam ser preenchidas quase instintivamente. Por outro lado, há construções mais sólidas na lista de atributos e na personalidade do protagonista. Ao citar a tarefa de redigir a carta como um deadline em fechamento de edição, podemos assegurar que se trata, de fato, de um escritor.
Portanto, testemunhamos o bloqueio criativo de um autor desesperado pela morte e à procura do legado final. Talvez esse fosse o aspecto mais curioso do início do longa-metragem. Com o transcorrer da obra, a reflexão ganha outro espaço. Nos faz pensar sobre a atitude de colocar no papel – e em perspectiva – revelações justificadas como um carta de adeus. O passo seguinte, o suicídio, retira do agente qualquer chance de saber como o(s) outro(s) vai(vão) lidar com isso. É possível que seja o maior ato de desapego, a certeza final do “querer morrer”.
Na proposta fílmica, Paulo não existirá mais quando suas palavras chegarem ao conhecimento de Marina. Somos, então, intermediadores dessa mensagem. Privilegiados por conhecer na origem aquilo que chegará à mulher enquanto produto do fim. Como bem define o personagem em certo momento: “essa fita é minha apoteose – e o meu apocalipse”. Isso porque o texto de Nikitin brinca com os diversos dispositivos de envio de mensagens. Não é apenas a carta, mas também o vídeo – ou, quem sabe?, um telegrama.
Ocorre que, enquanto diretores, Ribas e Machado fazem escolhas em “A Voz que Resta” que o aproxima de forma umbilical a um monólogo teatralizado. Opta por uma mise-en-scène pouco elucidativa, a luz vermelha cortando o breu e os enquadramentos próximos do rosto de Paulo quase todo o tempo. Alterna o foco, transforma o filme em uma experiência próxima a uma peça assistida em close.
Além disso, não parece abrir concessões ao texto original, dificultando a sustentação da história enquanto audiovisual. Aos poucos, o que seria uma longa carta vira uma mistura de divagações, ora próximas a um conto de desespero, ora remetendo a uma crônica com doses ácidas de crítica social. O longa-metragem, curiosamente, formou uma sessão dupla com uma peça de teatro. Ele foi assistido em cabine no mesmo dia em que pude prestigiar “Traidor”, obra mais recente de Gerald Thomas, em temporada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.
As duas criações artísticas vão por um caminho parecido. Lá, também, a personagem de Marco Nanini fará um monólogo tendo como base uma prisão injusta em uma ilha distante. Utilizará mais as questões da pós-modernidade, se lambuzando de forma provocativa dos atuais hábitos da sociedade. Mas, assim como Thomas, Nikitin não consegue evitar essa proposta de mensagem, pensada enquanto lição de moral. Retira o peso dramático da tal situação-limite tão potente na qual se encontra a gênese de seu texto.
No terço final de “A Voz que Resta”, os cineastas usam um pouco mais da montagem a partir de imagens sobrepostas. Complexifica a mise-en-scène, a torna mais trabalhada, a partir da profundidade de campo. É mais audiovisual. Fica a dúvida se esse quase abandono no curso da obra para torná-la mais vistosa ao final foi gestada na pré, pós ou na produção. E o que levou a isso. Parece que, quando o filme ganha textura, é tarde demais para angariar os espectadores, em estágio de desconexão ou praticamente um desapego parecido com a ideia que Paulo tem em sua mente.
Veja o trailer: