Mostra Lona 2020: Perdidos no Espaço-Tempo

Mostra Lona 2020: Atravessamentos

Mostra Lona: Sessão 04 Dia de Festa

Dentro da programação da Mostra Lona 2020: Atravessamentos, a Sessão 04 foi disponibilizada online no dia 25 de maio com os curtas “Derrubada” e “Estamos Todos Aqui” e o longa “Dia de Festa“. Uma composição ideal para se debater as diversas linhas espaciais e temporais que a questão da ausência de moradia digna para grande parte da população brasileira precisa enfrentar. São obras audiovisuais de metragens e linguagens bem distintas e que, mesmo assim, dialogam entre si com profundidade.

Derrubada” (2016), da cineasta Mirrah Iañez, é um curta experimental que vai direto ao ponto. Quando o poder público se coloca como antagonista atuante, sedento por dolo, o resultado é a destruição. Destruição essa que a hipocrisia daqueles que dizem governar para todos utiliza como mote. Ninguém ocupa porque quer, mas ninguém desocupa quando se vê diante de um carrossel de injustiças. A obra é de um período em que diretora se aprofunda no experimentalismo a partir de filmes de pequena duração. São quatro minutos do que restou da ocupação Portal do Povo, em São Paulo no dia 9 de agosto de 2014. Quatro mil famílias viram suas construções, objetos e lembranças se tornarem um amontoado de destruição impessoal. A câmera se preocupa em deixar o espectador com poucas referências de configuração territorial, aproximando a sensação de que poderíamos vislumbrar o resultado de qualquer escombro provocado pelas aludidas autoridades em qualquer ponto da cidade, do Estado ou do país.

Já no curta seguinte, “Estamos Todos Aqui” (2018), de Rafael Mellin e Chico Santos a preocupação é inversa. A obra usa a figura da mulher trans Rosa Luz, carregada de expressividade, para afastar a impessoalidade de imediato. Agredida pelo pai e expulsa de casa, ela terá que construir sua própria residência e o faz na Favela da Prainha. Todavia, ela se encontra diante do projeto de expansão do Porto da Santos (proveniente do PAC, que acelerou o crescimento por vezes sem discutir meios de evitar a aceleração da destruição). A partir desse ponto, os cineastas transitam entre o protagonismo de Rosa Luz e a intervenção de depoimentos de outros moradores da região, que possuem suas casas entre um mangue e a linha do trem.

“Estamos Todos Aqui” brilha em dois grandes momentos. No primeiro, uma indagação sobre a “origem da pobreza”, tal qual a dúvida da gênese ovo-galinha, nos faz concluir que a sociedade não é um organismo geneticamente mutável. Portanto, a miséria passou a existir no momento exato em que a riqueza também o fez – como em um estalo. A partir daí, passou a existir residências e residência, claro. A tática do poder público é a mesma de outras opressões de séculos e milênios passados. Marca-se a casa da família para condená-la. No caso de uma desocupação, para tirar quase tudo o que lhe cabe. No segundo momento, Mellin e Santos convidam os documentados a reescreverem o fim dessa história. Uma conclusão edificante, mesmo que Rosa Luz e os moradores da Favela da Prainha não consigam fugir do clichê da dura realidade.

Após duas abordagens distintas sobre despejos do interior e da capital de São Paulo, a quarta sessão da Mostra Atravessamentos se encerra com o longa “Dia de Festa” (2006), de Pablo Georgieff e Toni Venturi. Uma obra produzida no ano de 2004, quando sete ocupações simultâneas por lá aconteceram. Revisitar um filme pensado há mais de quinze anos foi uma das experiências mais educativas do festival até então. Imagens que já sentem o desgaste do tempo e uma abordagem documental mais tradicionalista são identificadas logo nos primeiros minutos. O longa parte das vidas de Neti, Silmara, Janaína e Ednalva; quatro coordenadoras do MST (Movimento dos Sem-Terra) à época entre 18 e 40 anos.

A caracterização das entrevistadas surge em uma montagem que transita entre depoimentos e pequenos fragmentos encenados de suas rotinas. Porém, com mais tempo de tela, os cineastas tentam ampliar as abordagens da questão da moradia. Quase 10% da população de São Paulo à época vivia em uma das mais de duas mil favelas. Todavia, essa é apenas uma das configurações de território que necessitam da problematização. Ao longo da primeira metade de “Dia de Festa”, em um formato de “contação de histórias”, o espectador partilha vivências de moradores de cortiços, de pessoas em situação de rua, até alcançar as ocupações de propriedades descumpridoras de sua função social.

Ao longo do trajeto é possível traçar paralelos com a situação brasileira atual. Desde a falta de política assertiva de acolhimento daqueles que (sobre)vivem embaixo de viadutos até a mitificação de mecenas midiáticos. Chama a atenção um depoimento de uma senhora que se queixa dos abrigos que a Prefeitura disponibiliza, o que faz com que o suposto acolhimento se revelasse, na prática, uma verdadeira prisão. Soluções que não servem nem como paliativos porque promovem ainda mais desumanização. Também se destaca um outro depoimento que fala da esperança de ter seu pedido de moradia digna atendido em um programa do Gugu. Esse assistencialismo televisivo ególatra nunca saiu de moda, mudando apenas as peças dos tabuleiros das grades dominicais .

Todavia, em “Dia de Festa” a figura da Polícia Militar de São Paulo e o uso do hino nacional são os elementos que suscitam os melhores debates sobre a distopia brasileira de 2020 (iniciada na eleição de 2018? No golpe de 2016? Nos protestos de 2013? Siga criando perguntas até chegar em 1500 e veja que não há resposta). Sobre a corporação, fica claro nas imagens dos confrontos entre população e policiais que o uso da força e da violência sempre foram os objetivos da PM. Em 2004 não somente era muito mais difícil promover ações coordenadas pelas dificuldades de comunicação (telefone celular era artigo de luxo, internet para muitos era algo inatingível e até o controle dos integrantes do movimento era complicado). Registros visuais como esses que Pablo Georgieff e Toni Venturi fazem em “Dia de Festa”, dentro da própria ação, eram raridades.

Temos uma geração que viu sua consciência política crescer a partir de lives do Mídia Ninja dentro de protestos ou viu rostos e ouviu vozes dessa luta em imagens de alta definição nas obras audiovisuais da última década. Porém, em um período de transição de ferramentas de captação mais leves e acessíveis, a violência talvez fosse ainda maior porque a certeza da impunidade e da falta de reverberação na sociedade estava incrustada nos representantes do poder público. Já relação dos invisibilizados com o hino nacional, um dos símbolos nacionais protegidos pela Constituição Federal no artigo 13, já foi melhor. Em um processo de apropriação conservadora da simbologia verde-amarela iniciado, este sim, nos últimos anos, é até inquietante a marcha da derrota vir acompanhada da sonora composta por Francisco Manuel da Silva no final do século XIX. Hoje ela seria ouvida partindo de um grupo de camisas da Seleção Brasileira de futebol – aquela que, no placar da vida, fez um gol na Alemanha em 2014.

“Dia de Festa”, entretanto, tem um terço final menos objetivo. Contemplando desde um depoimento forte acerca da fome com debates e ações dentro do MST, ele perde um pouco do rumo na montagem, quando estava tão bem constituído até aquele momento. Nada que atrapalhe a experiência de entender o panorama da luta por moradia de um período mais distante.

Resta ao público a reflexão crítica se estamos diante de um retorno a tempos sombrios ou se, de fato, jamais saímos dele. Para aqueles que nunca foram ouvidos e que tiveram boa parte de seus direitos vilipendiados desde o nascimento, é possível que a resposta seja facilmente encontrada em cada uma das obras do festival.


Ficha Técnica da Sessão

Derrubada (Mirrah Iañez, 4″ — 2016)
4 mil famílias sem moradia. Após despejo, o terreno da ocupação Portal do Povo abriga um empreendimento imobiliário de ”alto padrão”.
Estamos Todos Aqui (Rafael Mellin e Chico Santos, 20″ — 2018)
Rosa, expulsa de casa, precisa construir seu próprio barraco. Enquanto isso, um projeto de expansão do maior porto da América Latina avança, não só sobre Rosa, mas sobre todos os moradores da Favela da Prainha.
Dia de Festa (Pablo Georgieff e Toni Venturi, 77″ — 2006)
Neti, Silmara, Janaína e Ednalva são quatro mulheres que integram o movimento dos sem-teto na cidade de São Paulo. Elas lideram os preparativos para a realização de 7 ocupações simultâneas na cidade, ocorridas em outubro de 2004.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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