Amazônia Sociedade Anônima

Amazônia Sociedade Anônima

Sinopse: Diante do fracasso do governo brasileiro em proteger a Amazônia, índios e ribeirinhos, em uma união inédita liderada pelo Cacique Juarez Saw Munduruku, enfrentam máfias de roubo de terras e desmatamento ilegal para salvar a floresta.
Diretor: Estevão Ciavatta
Título Original: Amazônia Sociedade Anônima (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: Brasil

Amazônia Sociedade Anônima

Você Garante?

Na dimensão temporal em que tudo deu certo e existe planeta para os seus netos, no dia em que ele perguntar se as pessoas falavam realmente os absurdos que você, já bem velho ou velha, jurar que contavam, lembre-se de resgatar “Amazônia Sociedade Anônima” na sua coleção de DVD ou no nanochip instalado no seu cérebro com conexão sem fio para toda a família (provavelmente administrada em algum plano Controle por uma tradicional operadora de telefonia que oferecerá também esse tipo de serviço). No documentário dirigido por Estêvão Ciavatta, um dos depoentes, depois de afirmar categoricamente que “sem desmatamento, não existiria Brasil” traz a esdrúxula comparação do fim da maior floresta do mundo com a extinção dos dinossauros. E pergunta: “quem garante que as gerações futuras vão querer que a gente preserve a Amazônia? Se falasse que os dinossauros sumiriam naquela época ‘ninguém’ seria a favor…“.

Vivemos em uma era onde ar, água, ecossistema, saúde, equilíbrio são elementos dispensáveis. Esquecem que eles sustentam nossa existência – daí a sustentabilidade ser um dos termos mais usados nas últimas décadas. O cineasta em seu documentário não confronta diretamente os “proprietários rurais” (para usarmos um termo carregado de legalidade, mesmo que seja essa palavra bastante questionável quando falamos desta região). Prefere transitar, com certo didatismo, as questões as quais se propõe. O diretor, de larga experiência na televisão, entrega um produto enquadrado para o amplo consumo, inclusive do espectador estrangeiro. Formatado com a utilização de uma trilha sonora marcante,  a adição de uma música interpretada por Maria Bethânia, além da inclusão de Walter Salles no rol de produtores associados não são à toa. Há espaço, porém, para iniciativas com menor visibilidade, como o Coletivo Audiovisual Mundukuru, citado como exemplo da ressignificação da participação feminina na luta.

Amazônia Sociedade Anônima” se vale da curiosidade estrangeira e encaixa todos os elementos possíveis para ser eficiente nas representações. Textos contextualizantes (dando conta de que, ao chegarmos em 40% de desmatamento na floresta, os danos serão irreversíveis – e já passamos da metade disso); uma montagem inicial que reforça a riqueza e o colorido do bioma com a maior biodiversidade do mundo; bem como um fio condutor que se baseia nas escutas da Operação Castanheira, deflagrada em 2014. Isso aproxima o documentário de uma obra com teor mais jornalístico e denunciante, porém, ainda sobra espaço para olhar outros pontos fundamentais.

O principal deles é que a afirmação de que “sem desmatamento, não existiria Brasil”, é estapafúrdia. O país mal tocou nas terras amazônicas até o recrudescimento do regime militar de meados do século XX. Se limitou antes disso a atacar e assassinar os povos originários, é verdade. Mas o início da derrocada do “pulmão do planeta” se deu na década de 1970. O mais grave é o fato dos governos civis, mesmo os frontalmente contra a ditadura de outrora, não terem feito muito para reverter essa política de Estado. Pelo contrário, criaram o PAC e viram poucos avanços na proteção ao meio ambiente. Tanto que, nos primeiros anos do governo Lula, testemunhamos um embate ideológico entre Dilma Rousseff e Marina Silva – confronto este que, infelizmente, não se limitou a quem tinha a última palavra em um governo de duas décadas atrás – foram consequências que se desdobraram até o golpe antidemocrático de 2016.

Diante desta ausência de reformulação a favor da sustentabilidade, “Amazônia Sociedade Anônima” nos traz uma aliança incomum no Brasil. Vendo a Funai sem forças para seguir na luta, indígenas e ribeirinhos se organizam formalmente para proteger seu território. Quando falamos sobre o curta-metragem “Tupinambás – Vozes da Caminhada“ (2019), de Rodrigo Brucoli, criticamos a forma como a anistia é uma ferramenta de ampliação das desigualdades e da opressão no Brasil. Com isso, grileiros e invasores de terras demarcadas (ou em processo de demarcação) agem com a certeza de que, passados três ou cinco anos, uma nova lei garantirá a legalidade deste roubo de propriedade pública. Com isso, a decisão por um processo de auto-demarcação, tal qual mostrado no filme, parece ser uma saída. Todavia, sabemos o poder (não só econômico, mas armamentista) que faria a ampliação desse movimento um banho de sangue – mais um contra aqueles que sempre tiverem este território como direito.

Novamente a luta pela água é antecipada como novo fato gerador de conflitos, sendo questão de tempo para chegarmos nesse nível. O que tememos (e é o mais provável que ocorra) é que passemos os próximos anos, talvez décadas, visitando novas obras de igual temática a de “Amazônia Sociedade Anônima”, com alteração apenas de alguns elementos ou linguagens. Culpa do retrocesso. Na semana que o filme de Estêvão Ciavatta estreou na 9ª Mostra Ecofalante de Cinema, completou-se um ano do “dia do fogo” , uma ação coordenada de fazendeiros que marcou o atual momento da sociedade brasileira. No documentário, realizado antes do ocorrido, somos informados de que o processo de destruição precisa de três incêndios em determinados locais. Explicação que torna coerente que, um ano depois, a Amazônia siga em chamas.

Há uma outra possibilidade de dimensão temporal, idealizada por um dos entrevistados. Nela, os poucos indígenas que habitam o país, após mais de cinco séculos de genocídio, são os únicos que sobrevivem às mudanças causadas pela destruição da Amazônia. Uma forma de imaginarmos o futuro muito mais justa e que me deixaria feliz em me ver sendo colocado ao lado dos dinossauros na poeira cósmica dos opressores extintos. Pena que não poderia rever “Amazônia Sociedade Anônima” com os netos. Mas o planeta estaria muito melhor. Eu garanto.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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