Sinopse: Nesta autobiografia fragmentada e performativa, a multiartista estadunidense Garnett faz do encontro com seu pai irlandês, a quem desconhecia, um processo de investigação das imagens de um documentário televisivo realizado em 1971. Nele, o patriarca é apresentado como o jovem protagonista de um proibido romance inter-religioso (Católico/Protestante), vivido em Belfast no período dos Troubles. Com a mesma inspiração queer que atravessa trabalhos anteriores, a diretora faz da história o mote para uma reconstrução. Tensionando diversas margens, ela forja identidades à medida em que também as reinventa.
Direção: Mariah Garnett
Título Original: Trouble (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 22min
País: EUA | Reino Unido
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Há certo momento de “Trouble“, exibido na mostra Outros Olhares do 9º Olhar de Cinema, em que a cineasta Mariah Garnett fala da Irlanda que conhecemos dos filmes do Daniel Day-Lewis e das músicas do U2. Toda busca por origens nos leva, de certa maneira, a quebrar projeções e passar por cima de preconcepções naturalmente criadas. Se ver inserido em um contexto ao qual você nunca fez parte, acredito, deve ser uma experiência ao mesmo tempo dolorosa e revigorante.
Desta forma, a cineasta traz uma obra em que aborda o encontro com seu pai, David Coleman, com quem teve contato apenas aos 27 anos de idade. Há um equilíbrio fundamental em um documentário desta natureza – mais até do que a referência de passeio por imagens de arquivos travestido de autobiografia com sucesso no Brasil, “Democracia em Vertigem” (2019). Se Petra Costa tinha suas intenções de narrar a história política sob o viés familiar, aqui Garnett usa as tensões na sociedade irlandesa de forma acessória – permitindo o trânsito entre ela, criadora e personagem e o pai, personagem e – de certa forma – criador.
Reflexo não apenas do afastamento já tratado inicialmente. “Trouble” une a composição de vídeos e fotos privadas revisitadas com a imprevisibilidade de quem produz uma peça documental em aberto. Há momentos em que a diretora consegue usar esses novos elementos de forma controlada. Um deles é quando David lê trechos de algumas cartas nunca enviadas à filha ao longo de duas décadas. Em outros, não há muito o que fazer a não ser respeitar os caminhos que seu filme teve que seguir – o principal exemplo é a negativa do pai de voltar a Belfast ou ter contato com seus irmãos.
A relação entre ele e sua mãe teve força midiática por ser considerado o amor impossível entre um jovem católico e uma moça protestante. Mariah é uma norte-americana que não consegue se esquivar da carga ancestral daquele território, mas o ressignifca com seus aditivos performados ou na captação de apresentações de artistas queer. O auge do confronto entre católicos e protestantes, ficou marcado em 1972, no fato histórico conhecido como Domingo Sangrento. Belfast também teve o seu bloody sunday no ano anterior, quando onze civis foram assassinados pelo Exército Britânico no evento conhecido como “o massacre de Ballymurphy” (área residencial da cidade). A motivação era prender supostos membros da brigada separatista da república provisória irlandesa.
O filme, então, segue o interessante caminho da reconstituição, onde a performance ganha força. Enxergado como uma alternativa à essa nova ausência de David, o fato é que funciona muito bem. Assistir à cineasta se colocando tal como o pai é uma maneira de assisti-la receber essas referências, além de quebrar as barreiras de gênero, ampliando a implicação política do discurso de uma obra que já transita por inúmeras questões. Passamos quase todo o tempo do documentário testemunhando e nos questionando até que ponto conseguiríamos adentrar, na fase adulta, por esse passado o qual mal tivemos acesso.
Até porque as representações particulares da vida familiar divide espaço na parte final com o olhar estrangeiro aplicado à cultura de Belfast. Registros das fogueiras gigantes que marcam o feriado de 12 de julho – data onde os protestantes comemoram a ascensão de sua vertente cristã pela figura de Guilherme de Orange como Rei é a maneira como Mariah Garnett parece concluir em “Trouble” que o simples intercâmbio do resgate de relações que pareciam perdidas não é o suficiente para criarmos uma sensação inquestionável de pertencimento.
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