O Paraguai que não fala espanhol. A reunião de cinco curtas-metragens impressionantes, na sessão reservada ao país dentro da Mostra Latino-Americana de Curtas nos faz atravessar por um século XX cheio de sofrimento para os povos originários, perseguidos e assassinados independente de quem detinha o poder. A prova de que não há sistema de governo que tenha tomado conta da América Latina capaz de respeitar e preservar a cultura de quem aqui estava antes que “sistema” e “governo” fizessem parte do vocabulário.
Uma América Latina cansada de ver sangue escorrer por suas terras – e telas. Porém, ao contrário do longa-metragem brasileiro “King Kong en Assunción” (2019), que alia melancolia a uma aridez mais fulgurosa, a cinematografia apresentada aqui é mais sensorial, apostando na permanência da imagem ou até mesmo na substituição das palavras por uma montagem ligeiramente mais dinâmica para traçar seu arco narrativo curto. Ao mesmo tempo, o espectador ultrapassa a experiência da perspectiva histórica do nosso país vizinho e conhece um pouco mais do panorama audiovisual atual, que teve um marco em 2009, com uma das produções apresentadas.
“Karai Norte” (2009) é a obra mais antiga tanto na linha temporal histórica quanto em relação ao ano de lançamento. Dirigida por Marcelo Martinessi, foi a primeira produção paraguaia selecionada para o Festival de Berlim. Ambientada na chamada Revolução dos Pynandi (que, em guarani, significa, pés descalços), a guerra civil de 1947 se apresenta pela perspectiva de uma senhora que recebe a visita de um andarilho. A fotografia em preto e branco, a preocupação com planos-detalhes sempre relacionados com partes do corpo, há uma tendência na narrativa gestada pelo cineasta de absorver a linguagem do faroeste, principalmente no diálogo com a inconsistência das leis locais.
Esse senso de justiça é trabalhado pelos dois personagens. Ela oferece comida, mas não deseja nada em troca. Ali somos confrontados com uma sentença interessante, que perpassa os povos originários desde sempre: as múltiplas ideologias do homem branco, do colonizador e suas crias, pouco lhe importam. Nos grotões paraguaios, é indiferente para aquela mulher se haveria levante comunista, se o peronismo influenciaria a nação em que ela vive ou como outro grupo se opôs a tudo isso. Afinal, o que é nação? O tratamento a ela dispensado, diretamente, é tão desumanizado pelos dois polos, que toda essa reflexão perde o sentido.
É fundamental vincular essa proposta de início de sessão com a outra ponta histórica desta linha. Também dirigido por Marcelo Martinessi, “La Voz Perdida” (2016) traz não apenas a maturidade artística, como um flagrante ganho de qualidade. O diretor se propõe a tratar de um assunto contemporâneo: o Massacre de Curuguaty, que vitimou seis policiais e onze trabalhadores sem-teto no dia 15 de junho de 2012. O genocídio, ocorrido durante uma reintegração de posse, levou ao impeachment do Presidente Fernando Lugo, ex-bispo católico que encheu de esperanças a população mais jovem – uma destituição vista por muitos como um golpe antidemocrático aos moldes do ocorrido quatro anos depois no Brasil. Usado como estopim para o afastamento pela alegação de “mau desempenho”.
Apesar de estarmos diante de um governo progressista e democraticamente eleito, a sensação de insegurança parece remeter a períodos autoritários. Dona Mela é uma senhora que sofre a angústia de ver que o filho Adolfo não voltará para casa naquele dia. O cineasta explora mais os elementos da propriedade familiar, quase como se tratasse a moradia como a protagonista de uma narrativa densa. Já “Kirirî (Silêncio)” (2018), de Miguel Agüero, faz um diálogo visual próximo. Trata da relação familiar, a inocência infantil, para o clímax mais cruel dentre todas as obras da sessão.
Ambientado na longa ditadura civil-militar que tomou conta do país entre 1954 e 1989, há uma transmutação nas imagens produzidas pelo cineasta. Abre mão dos diálogos para usar uma montagem mais dinâmica do que a média das outras produções. O terror vai tomando conta da narrativa a partir das representações vinculados ao clima. A chegada da noite traz consigo a melancolia, ampliada com a forte chuva do dia seguinte. Esse recrudescimento imagético permite que a sutileza com a qual a morte chega não deixe de provocar o choque. Cruel e silenciosa.
Seguindo uma linha diferente, “Kurusu Rebelde” (2015), também de Miguel Agüero, minimaliza a construção. Nos mantém por quase meia hora (curta-metragem de maior duração da sessão) em um plano aberto, estático, em que uma senhora, Blásida, faz o ritual do luto que lhe foi negado durante o governo de Alfredo Stroessner. Acompanhado de um morador das proximidades da chamada Cruz Rebelde (título do filme), ela resgata ao lado do neto a existência que, injusta e repentinamente, se desfez sem deixar rastro.
Uma cruz na praia, uma pá. Ali, naquele núcleo familiar, Blásida fala da precariedade do tratamento médico e da perseguição promovida pelo regime autoritário. Em guarani, a protagonista se questiona o que é comunismo e porque, sob essa alegação, qualquer anseio da sociedade é criminalizada. A América Latina vai se remodelando sempre a partir dos mesmos discursos, das falsas simetrias, da mentira que mata. A justiça social, quando buscada, se torna um risco para quem comanda. Aqui, nunca mudamos os detentores do poder – eles se antecipam sempre e nos esmaga.
Os povos originários são a prova de que a opressão nunca arrefeceu. Nessa jornada pelos cinco curtas-metragens paraguaios, suas vozes e formas de expressão se conectam com uma ancestralidade que pode ser materializada. Narrativas de vários tempos, unidas pelo mesmo sentimento. Miguel Agüero também é o diretor de “Mita’I” (2011). Talvez o único que procure algo próximo da esperança – mesmo que podendo ser interpretada pelo viés da ironia. Ele se inicia saudosista e também é ambientado no período do regime militar comandado por Stroessner.
Matías é um adolescente que deseja voltar a estudar, sonho que lhe foi tolhido. O diretor busca um sépia na fotografia para marcar esse olhar do protagonista para um grupo de estudantes que caminha pela estrada ao lugar onde aquele jovem queria (e deveria) estar. “Pobre não chora“, diz a mãe – um tapa de meritocracia na cara de quem atinge a lucidez de que seu futuro ideal é mais perto do utópico.
Até que o espanhol é ouvido. Aquele que uma parte do público talvez imaginou ouvir ao longo da sessão. Matías, como que condensando todos os suores e lágrimas de personagens que quebram o espaço-tempo, canta um trecho do hino oficial do Paraguai. “União e igualdade‘, ele diz – para que subam os créditos. É o que dizemos. Não é o que fazemos.
Ficha Técnica da Sessão Paraguai da Mostra Latino-Americana de Curtas:
Karai Norte (Marcelo Martinessi , 20′ – 2009, Paraguai)
Sinopse: Um homem, uma mulher. Um encontro casual os impele a reviver momentos que ambos estão tentando esquecer. Baseado em um clássico da literatura paraguaia, o filme ganhou como melhor curta-metragem o Prêmio do Público, no Festival Equador Cero Latitud, em 2009, e no Festival de Cinema AXN, em 2010.
La Voz Perdida (Marcelo Martinessi, 11 – 2016, Paraguai)
Sinopse: A partir de uma entrevista original sobre o massacre de Curuguaty, cidade ao nordeste da região oriental do Paraguai, “A Voz Perdida” faz um questionamento sobre fatos históricos recentes do país.
Kirirî (Silêncio) (Miguel Agüero, 26′ – 2018, Paraguai)
Sinopse: Em plena ditadura militar, um calmo silêncio envolve a vida camponesa de uma avó e de sua neta, no interior do Paraguai. Uma ausência repentina, no entanto, torna esse silêncio um tormento. Este filme é em memória de todas as meninas vítimas da ditadura cívico-militar de Alfredo Stroessner, no Paraguai (1954–1989).
Kurusu Rebelde (Miguel Agüero, 28′ – 2015, Paraguai)
Sinopse: Blásida, uma senhora de oitenta anos, viaja acompanhada por seu neto, Felipe, para procurar os restos mortais de seu marido, desaparecido durante a ditadura militar de Alfredo Stroessner. Ela contrata Pablino, um camponês que diz conhecer o lugar onde está enterrado o marido de Blásida. Pablino guia os dois até um local conhecido como Kurusu Rebelde, a cruz rebelde.
Mita’I (Miguel Agüero, 12′ – 2011, Paraguai)
Sinopse: Matías tem 17 anos e quer voltar a estudar, mas não pode porque precisa de uma aula especial que, na comunidade onde mora, não existe. Ele também está encarregado de cuidar de seus irmãos mais novos desde que a mãe e sua irmã mais velha foram trabalhar na capital.
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