Mostra Olhar do Ceará | Sessão 1 de Curtas
Uma Sombra do que Éramos
Com três realizadoras mulheres, a Sessão 1 de curtas-metragens da Mostra Olhar do Ceará, dentro da programação do 30º Cine Ceará, parte da representação analítica de um olhar acadêmico ao personalíssimo direito de revisitar a própria história e de seus antepassados para mostrar como, em constante mudanças, sempre podemos dizer que somos – ou seríamos – diferentes de outros tempos. Disponível no canal do festival no YouTube ao longo do dia 5 de dezembro – data da abertura – cada filme foi antecedido por uma breve apresentação dos realizadores.
O primeiro foi “Sobra do Tempo“. Nele, a cineasta Naiana Magalhães traz seu trabalho de pesquisa de mestrado. Sua pergunta norteadora era: “o que acontece depois que a jangada sai?“. O que observamos, contudo, é mais do que um exercício antropológico de visita à rotina de um pescador contemporâneo. A montagem do curta-metragem tem uma preocupação em se consolidar no espaço-tempo de sua produção. Naiana, então, adiciona à composição algumas fotografias antigas, em que contrastes de classes sociais são facilmente identificáveis.
Abdicando da verbalização, em boa parte da projeção somos levados a um passeio pelo mar. Acompanhamos o silencioso ofício de um trabalhador responsável por nos prover alimento. O tom crítico – inaugurado com as representações fotográficas – retorna na parte final. A diretora encontra uma curiosa possibilidade imagética em um contêiner da marca Capital em primeiro plano, com dois arranha-céus ao fundo. A partir deste ponto, ela atualiza o discurso, mostrando a transformação da orla da praia no infindável crescimento da especulação imobiliária dos grandes centros urbanos. Entulhada de concreto e reservando ao homem do mar – tão vital para aquela comunidade – um pequeno espaço. Uma tradição limitada na faixa de areia.
Realizado de forma 100% independente e com uma equipe toda feminina, “A Fome que Devora o Coração” é um chamado liderado por Raiane Ferreira. Na semiótica brutalmente naturalizada de uma busca ditatorial pela beleza e na imposição de comportamentos, também é um curta-metragem de poucas palavras. Usa o corte em um pedaço de carne como porta de entrada para um ritual de libertação cotidiana constante.
Menos referencial a aspectos de gênero, Raiane chega mais próximo de uma jornada de descoberta, de sacralização de si, para que a protagonista entenda seu corpo como templo. Não à toa, “Deuso Deusa” de Anelis Assumpção é a marca final da obra. No único momento em que nosso olhar foge da personagem, o início de uma sequência traz o contraste ao apresentar dois homens conversando em uma calçada. Donos da rua, que não merecem mais transitar sem questionamentos por espaços de todos aqueles que ali desejam estar.
Encerrando a Sessão 1, “Pequenas Considerações sobre o Espaço-Tempo” é um excepcional exercício de revisitação e de outras projeções sobre nós e nossas origens. Realizado por Michelline Helena durante a pandemia do novo coronavírus, ela parte da reorganização de fotografias de sua família para nos apresentar aquelas pessoas – o que são, foram, queria ou mereciam ter sido.
Uma forma de expressão que ganhou adeptos no confinado 2020, que alia a potência do cinema que usa o arquivo como mote com a sentimentalidade. É possível que no próximo ano, com as limitações a novas produções, outras obras com possibilidades tal qual a proposta pela cineasta surjam nos festivais – e a Apostila de Cinema está bem ansiosa para acompanhar esses desenvolvimentos.
Com apenas três minutos, o núcleo familiar de Michelline é colocado como referência para nos fazer refletir sobre sonhos do passado. Irrealizáveis ou não, somos seres em constante transformação e parte de nossas expressões acontecem a partir de objetivos e metas que pensamos para nós mesmos. Como estaremos daqui a dez anos? O que não podemos deixar de fazer antes dos 30? Regurgitamos um ideal de felicidade, mesmo que – da boca para fora – reproduzamos o discurso de que este é um conceito aberto.
O curta-metragem, entretanto, não deixa de ser uma forma de concluir que nossa vida não é aquela projetada. Ela é o que fazemos dela – como nos relacionamos com os nossos, como nos adaptamos ou extraímos o melhor das situações. No final do dia de ontem, por exemplo, foi motivo de felicidade – no meio de um caos sem fim que se tornou nossa existência e os incalculáveis danos de uma sociedade que insiste em não refletir – ser apresentado a três realizadoras que dividiram conosco seus olhares, pesquisas, sentimentos e origens.
Mudamos – e que bom que mudamos.
Ficha Técnica da Sessão 1 de Curtas da Mostra Olhar do Ceará
Sombra do Tempo (2020, Naiana Magalhães, Brasil, 20′)
Sinopse: Durante o ano de 2016, acompanhamos a pesca artesanal no estado do Ceará, Brasil. Sob a pergunta norteadora: “Depois que a jangada sai, o que acontece?”. Nos lançamos ao alto mar acompanhando os pescadores, mas, ao entrar no mundo da pesca, também entramos nos conflitos entre a pesca artesanal e o modo de vida gentrificador e capitalista das grandes cidades litorâneas.
A Fome que Devora o Coração (2019, Raiane Ferreira, Brasil, 16′)
Sinopse: Uma mulher independente e solitária se contenta em ter pequenos prazeres no seu dia a dia na cidade. Mas algumas situações a fazem experimentar novas sensações e descobrir o que seu corpo é capaz de lhe proporcionar, só assim ela poderá encontrar sua deusa interior.
Pequenas Considerações Sobre o Espaço-Tempo (2020, Michelline Helena, Brasil, 3′)
Sinopse: O futuro não existe até virar presente. Mas quem são essas pessoas que habitam esse tempo? Em conversas com a minha mãe, viajo até elas para redescobrir quem sou ou poderia ter sido.
Mostra Olhar do Ceará | Sessão 1 de Curtas
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