24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 2

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Curta Seiva Bruta Gustavo Milan Panorama | Sessão 2
Seiva Bruta (Gustavo Milan, 2020)

Água e Terra

O amplo panorama do audiovisual brasileiro (e precisa ser assim pela pluralidade de possibilidade que vemos encontrando) nos reserva na segunda sessão de curtas-metragens na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes uma conexão com dois fortes elementos: a água e a terra.

Seiva Bruta“, do realizador Gustavo Milan, que tem circulado em festivais nos Estados Unidos, onde está radicado, nos toca com uma trama universalista sobre as questões migratórias atuais, ao mesmo tempo que traz o Brasil para o centro das ações. Contando a história de uma venezuelana que atravessa a fronteira ilegalmente, o cineasta costura uma união entre mulheres a partir da generosidade da protagonista em amamentar o filho da outra.

As dúvidas acerca das origens da personagem ampliam a inquietude gestada por Gustavo. Demoramos para entender o destino daquele filho que não está lá e essa revelação é imediatamente anterior ao ponto de virada do filme. A atitude instintiva de oferecer o leite produzido por seu organismo à criança trará graves consequências. Contudo, nessa tragédia pensada por Milan, o espaço da esperança ocorre na proximidade com as águas. O destino daquela mulher nunca foi Manaus e olhando o horizonte em um barco ela começa a planejar tempos menos difíceis do que a trajetória que “Seiva Bruta” mostra – e ainda mais do que antecedeu essa narrativa.

Curta Mangue-Branco Flávia K. Ventura
Mangue-Branco (Flávia K. Ventura, 2020)

O espectro masculino enquanto elemento de tirania é novamente trazido em “Mangue-Branco“. A direção de Flávia K. Ventura traz um drama mais cru do que o estado de expectativa administrado na obra anterior. A montagem desenvolve um incômodo com as carniças sendo dilaceradas por urubus, porém uma violência bem menos explícita, em um trabalho de provocação psicológica. Sente-se o incômodo quando a protagonista, que é chamada de “mulher do Ricardo” em um dos momentos, revela a sua realidade oprimida enquanto mulher.

Ventura, então, faz um ponte de virada que também envolve situação-limite. Todavia, faz isso usando outra personagem. A partir desse testemunho, que ocorre na areia da praia, “Mangue-Branco” não deixa de ser também um ponto de virada em que o medo se transforma em algo novo, ainda a ser processado pela protagonista. Estar perto da morte, olhar nos olhos dela, sabendo que não há risco de atingir, a faz pensar o quanto sua vida caminha para um flerte mais direto com a tragédia.

Nessa intenção de ser um conto sobre a transformação internalizada, sobre os atos preparatórios de um futuro de liberdade, o curta-metragem faz a ponte para outro elemento fundamental do nosso mundo.

Curta Opy'I Regua Júlia Gimenes e Sérgio Guidoux Panorama | Sessão 2
Opy’I Regua (Júlia Gimenes e Sérgio Guidoux, 2020)

Isso porque o documentário “Opy’l Regua“, de Júlia Gimenes e Sérgio Guidox, nos traz a terra como condutor da narrativa. Mostrando a construção de uma Opy, espaço que os indígenas Mbya Guarani dizem “fortalecer nossos parentes e nós mesmos”, há uma preocupação em não traçar paralelos com outras manifestações de fé. Fica nítido que estamos diante de um espaço de reza, como diz a sinopse, feita para Nhanderú, o deus-luz, criador do mundo.

Aqui universaliza-se as representações se pensarmos naquela construção como algo que converge. Mesmo dentro de comunidades de forte conexão entre seus indivíduos, há necessidade de missões que democratizem o desempenho de suas funções. Ali, portanto, há a oportunidade de relações para além das homenagens à sua entidade máxima. Há, também, uma troca que vai da organização e divisão de tarifas, até os ensinamentos aos mais jovens.

Com forte som dos pássaros, os minutos que passamos na reserva indígena Tekoá Guyrá Nhendú, no Estado do Rio Grande do Sul, nos conecta por essa busca de dignidade enquanto sociedade. O barro que escorre nas mãos supera o elo de ligação de cada um deles ao território – há uma emocionante sensação de pertencimento.

Curta Construção de Leonardo da Rosa
Construção (Leonardo da Rosa, 2020)

A sessão da Mostra Panorama se encerra com “Construção“, curta-metragem de Leonardo da Rosa que assistimos no Festival de Gramado de 2020 – onde ganhou diversos prêmios dentro da mostra gaúcha. Confesso que, pessoalmente, era uma das obras que mais esperava em Tiradentes. Não apenas porque é uma produção que traz a moradia popular enquanto objeto de grande qualidade técnica, perfeita para ocupar esses espaços, como pela chance de me debruças mais no filme – visto em uma maratona insana nos últimos dias em que a seleção de Gramado estava disponível.

Não foi feita a justiça sobre a potência de “Construção” naquela época. Mesmo com a forte exploração desse tema em muitos textos que fizemos na cobertura de duas edições da Mostra Lona, há uma narrativa aqui que nos sensibiliza de forma diferente. Se o curta-metragem anterior tinha o respeito ao território e um novo espaço comunitário se erguendo da terra, a dignidade que a protagonista Andréia alcança aqui toca fundo em milhões de brasileiros, vítimas de uma política habitacional predatória.

A importância de produções como as que compõem a filmografia de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, cada vez mais próximos de um público maior, se reflete diretamente aqui. Leonardo da Rosa parece propor uma imersão por aquele espaço, em que Andréia construirá pelas próprias mãos sua casa. Todavia, move a câmera ou entrega na montagem muito mais. Em uma das que mais se destacam, o próprio conceito de casa ser, de certa forma, imaterial, aparece com a captação de objetos. O varal estendido no local da construção já vinculam aquele espaço àquela família. As interações com quem mora próximo de igual maneira,

O território e o direito à moradia são pilares da sociedade e direitos fundamentais justamente porque esses elementos enquanto partes da construção do indivíduo e da sociedade precisam estar arraigados em todos nós. Pois bem, algo que quem detém o poder não quer presenciar – e que filmes como esse são capazes de incutir.


Ficha Técnica Mostra Panorama | Sessão 2

Seiva Bruta (Gustavo Milan, 17′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Marta, uma jovem mãe venezuelana, imigra para o Brasil. Durante a sua jornada, ela conhece um jovem casal em dificuldades. O casal tem um bebê e Marta a capacidade para amamentar.
Mangue-Branco (Flávia K. Ventura, 18′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Maíra vive em uma pequena cidade litorânea onde trabalha como massagista em um hotel. Passa os dias em uma rotina sem grandes entusiasmos e perspectivas, na qual divide-se entre o trabalho insosso, a convivência com um marido distante, e caminhadas pela cidade. Certa tarde, depara-se com um acontecimento que reverbera no interior de Maíra como um impulso para rever sua vida como um todo.
Opy’I Regua (Júlia Gimenes e Sérgio Guidoux, 26′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Gente grande e gente pequena, sabida e iniciante, pegam junto em um processo de construção, coleta, aprendizagem e reverência. No extremo sul da mata atlântica, após mudar a sua pequena aldeia para uma nova área, a cacica Júlia conduz a construção da Opy, a casa de reza Mbya Guarani.
Construção (Leonardo da Rosa, 16′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Após ser despejada de sua casa Andréia volta anos depois para a comunidade da Getúlio Vargas com seus filhos Augusto, Gustavo e Bruno. Com a ajuda deles ela inicia a construção de sua casa própria.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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