Eu, Empresa

Eu, Empresa Filme Crítica Leon Sampaio e Marcus Curvelo Mostra Tiradentes Pôster

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Sinopse: Um trabalhador informal enfrenta problemas financeiros e emocionais. Sem oportunidades decentes de trabalho, ele cria um canal no Youtube pra tentar monetizar suas pequenas histórias de fracasso, enquanto presta serviços precarizados para empresas estrangeiras.
Direção: Leon Sampaio e Marcus Curvelo
Título Original: Eu, Empresa (2021)
Gênero: Comédia
Duração: 1h 22min
País: Brasil

Eu, Empresa Filme Crítica Leon Sampaio e Marcus Curvelo Mostra Tiradentes Imagem

Arrasta pra Baixo

O encerramento da Mostra Aurora da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes é daqueles filmes que tentam encapsular nosso tempo. “Eu, Empresa“, dirigido por Leon Sampaio e Marcus Curvelo (o segundo também estrela o filme), pode parecer carregado de premissas comuns, de observação de cotidiano. Todavia, o tom crítico que a comédia nos traz é fundamental para formação de um debate. Um não, vários, visto que a precarização do trabalho (podemos até chamar de FIM do emprego) é apenas a porta de entrada para alguns dos males mais destruidores da sociedade.

Marcus (Marcus Curvelo) é um homem que atinge o ponto de chegada da estrada que leva à falta de perspectiva. Sem emprego formal, ele tenta todas as formas atuais de se levantar dinheiro e obter sucesso. Empreende a si mesmo, como gostam de dizer. Aqui na Apostila de Cinema essa modalidade de falência comunitária circunda boa parte dos nossos textos. Na pesquisa para essa crítica, por exemplo, o termo “precarização” surge em outras dezenove críticas. Ou seja, algo recorrente, se pensarmos que existimos há menos de um ano.

O que “Eu, Empresa” faz é traçar um panorama das expressões da sociedade – e faz isso com poucos personagens e equilibrando diálogos com uma trajetória pelas maneiras de seu protagonista performar. A dinâmica da narrativa é notável, o longa-metragem aproveita as oportunidades de atualizar a linguagem audiovisual reunindo simulações de gravações de vídeos para a internet, um ar documental quando determinadas falas assim o pedem e algo mais tradicional, permitindo que um público maior se conecte à obra. O que os primeiros episódios da série “Shippados” (2019) faz com um relacionamento amoroso na meia-idade (antes de se tornar outra coisa, infelizmente), atingindo uma geração que amadureceu de forma estranha (falo porque me insiro nela), o filme faz com a relação do indivíduo com seu trabalho.

Nessa comédia indie as formas de diálogos surgem em diversos cliques. Do amigo que, sem mais explicações, diz que perdeu o contato com o próprio pai (coisas da vida ou reflexo da polarização política do país?) aos coachs que vendem o milagre do Eu, Empresa. Mudar o mindset é preciso, mas, veja: você é uma empresa e todos os outros que estão próximos são parceiros. Com a pejotização de nós mesmos, acabou a relação humana. Nunca sabemos quando estamos ouvindo um amigo ou em uma reunião de trabalho (pode ser até os dois e na mesma aba do computador). O desabafo nas redes sociais e a memetização da própria vida, são alguns dos elementos que Sampaio e Curvelo inserem com muita fluidez no longa-metragem.

Em determinado momento o protagonista aposta na retórica outsider e faz como o personagem de uma música da Pitty, quando ela o sentencia: “o fracasso lhe subiu a cabeça” (que adoro, mas hoje parece um hino meritocrático). Hoje nos rebelamos para nos inserir e isso gera uma confusão acerca de nossa personalidade. Por isso a cena em que aspirantes a youtubers falam de suas pretensões é uma quebra narrativa muito bem-vinda. A montagem estende esse momento para deixar esse recado de que moldar nossos comportamentos é um caminho sem volta para o fim da nossa saúde mental.

Apesar de parecer que estamos diante de uma comédia a todo o tempo, Marcus Curvelo impõe uma interpretação que deixa claro o drama vivido por Marcus. Buscando “como curar depressão sozinho” no Google (quando o certo é procurar ajuda, já que os sintomas estão presentes) ou projetando essa falência dele enquanto indivíduo economicamente inativo aos seus outros relacionamentos. “No Hay Futuro” poderia ser um bom título para essa crítica, mas “Eu, Empresa”, ao contrário das representações lynchianas, não deixa espaço para o flerte com o onírico. Por sinal, o mundo da fantasia precisa se inserir na realidade. Afinal, precisamos nas redes sociais vender sonhos e felicidade o tempo todo – ou assumir a personagem rabugenta até que isso seja monetizável.

Se ontem em “Ópera dos Cachorros” me permiti escrever do cinema enquanto produto, chega agora esse filme e tece de forma naturalista as diversas formas de sermos nós também um bem de consumo. Durável, sim, mas cada vez mais descartável. Qualquer dia sai uma reportagem sobre os benefícios do descarte humano, consumido pela natureza não-sei-quantas-mil-vezes mais rápido do que o plástico. Quem sabe tenha mais petróleo para a espécie evoluída que chegará um dia.

Nessa lógica de que os ofícios estão acabando, o filme tem esse poder de identificação com muitos de nós. Provavelmente a sua profissão está em crise, porque o mercado entendeu que transformar todas em um misto de guerra com espetáculo rende muito dinheiro. Os humanos, então, seguem pisando uns nos outros (e a cena do aeroporto é a desoladora forma de materializar essa ideia). Ou o “freela fixo”, um Frankenstein Capitalista que sai da boco do protagonista em determinado momento. Uma licença poética do esmagamento.

O longa-metragem, união entre Bahia e Minas Gerais, ainda traz dois grandes nomes da música brasileira atual em sua trilha: Negro Léo e Baiana System. Por fim, imaginar que o sucesso gera obrigatoriamente a entrada no circuito do cancelamento, deixa em aberto no filme novas oportunidade de revisitar a vida de Marcus. A prova de que esse é nosso esporte favorito foi a rinha de atrações dentro da bolha da crítica cinematográfica. Tem Mostra Tiradentes de graça em casa, mas muitos tentam impulsionar suas redes sociais, gerando engajamento, falando da edição desse ano do Big Brother Brasil. Eu, quer dizer, minha empresa, permitiu se divertir com meu programa de TV favorito a partir de 31 de janeiro. Talvez tenha perdido alguns seguidores até lá.

Se sobrar Humanidade daqui a  um tempo, “Eu, Empresa” precisa estar em algum lugar como fonte para lamentarem ou acharem graça da nossa desgraça contemporânea.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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