24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 4

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Curta Fora de Época Drica Czech e Laís Catalano Aranha Panorama | Sessão 4
Fora de Época (Drica Czech e Laís Catalano Aranha, 2020)

É o Poder

A quarta sessão da Mostra Panorama, dentro da programação da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, apresenta três histórias reais de perseguição a fortes e talentosas mulheres brasileiras – para, ao final, como parece se erguer em um audiovisual cada vez mais propositivo, posto que igualmente perseguido pelo poder institucionalizado; evocar uma história de união e esperança de uma geração mais livres de algumas amarras da sociedade.

Fora de Época“, de Drica Czech (também autora, rosto e voz desse poderoso texto) e Laís Catalano Aranha (responsável igualmente por fotografia e montagem) nos leva mais uma vez ao fatídico dia do segundo turno das eleições de 2018. Será difícil nos livrarmos das reminiscências daquele dia tão cedo, até porque ali foi apenas a materialização de um processo, de um levante – e há quem, ao meu ver acertadamente, diga que sequer foi um processo visto que o chorume fascista nunca, de fato, esteve ausente.

Renata é uma jovem que foge para o sítio da família, parcialmente abandonado após a morte da mãe. No caminho, ouve Gloria Groove no carro, um espaço em que os discriminantes censores da vida alheia não consegue alcançar. Buscas espaços para sermos que realmente somos, sabemos, não é o suficiente. Só que a comunidade onde estamos escolheu Jair Bolsonaro o presidente do Brasil. Enquanto o país inicia uma nova jornada rumo ao caos, a protagonista decide limpar e organizar aquela casa. Interessante como “O Tempo é sua Morada” de Francisco, El Hombre circunda todos os filmes. Aqui, a morada enquanto lugar de pertencimento e de espaço onde voltamos a nós mesmos.

Os registros nos créditos dão luz a um dos maiores casos de apagamento histórico de mulheres lésbicas – que deixamos em aberto para quem não assistiu. Buscar novos horizontes ou resgatar antigas moradas se tornou mais urgente depois daquele dia em 2018 – e “Fora de Época” é mais um conto sobre isso.

Curta Adelaide, Aqui não há Segunda Vez para o Erro Anna Zêpa Panorama | Sessão 4
Adelaide, Aqui não há Segunda Vez para o Erro (Anna Zêpa, 2020)

A sessão continua com “Adelaide, Aqui não há Segunda Vez para o Erro“, de Anna Zêpá. Nele, a dinâmica proposta pela cineasta se propõe a apresentar a história da escritora Adelaide Carraro pelo olhar dela mesma. Falecida em 1992, ela passeia pelas cercanias do Cemitério do Horto, conversa com donos de sebos, para tentar compreender o seu legado. Grande sucesso editorial, suas histórias com alta dose de sensualidade (e sexualidade) foram parte da da literatura popular nos anos 1960 e 1970.

A referência ao romance com Jânio Quadros, quando esse foi governador de São Paulo nos anos 1950, não deixa de tocar na política enquanto objeto. Trata-se de mais uma guinada conservadora da sociedade brasileira, de um burocrata que se firmou na cidade mais rica do país e não aguentou um ano de governo porque sua plataforma era “contra tudo isso que está aí”. O Vassourinha, alguns imaginaram, se repetiria em 2019 – mas a sanha por reformas que tirem direitos dos mais pobres vêm sustentando “isso que está aí”.

A dinâmica do curta-metragem funciona muito bem, estamos diante de mais um contra-apagamento fundamental. Questiona a hipocrisia brasileira ao tratar a leitura de Adelaide como um prazer escondido. Um guilty pleasure baseado no preconceito. É um tom mais intimista do que o didatismo de “Zéfiro Explícito” (2012)m autor popular que ganha agora documentário de Silvio Tendler.

Curta De Dora, por Sara Sara Antunes Mostra Tiradentes
De Dora, por Sara (Sara Antunes, 2020)

De Dora, por Sara“, de Sara Antunes, é uma das produções mais impactantes dentre as mais de cem presentes na Mostra Tiradentes desse ano. Representante da VAR-Palmares, Maria Auxiliadora Lara Barcelos não aguentou as insanas torturas que sofreu no início da década de 1970 quando presa pela ditadura militar brasileira. Faleceu em 1976 em Berlim, após um período anterior exilada no Chile.

A potência daquelas palavras, com o incômodo de um espelho dentro da água se amplificam na cena da imagem selecionada pela produção do festival, quando a mãe de Dora aparece. Já mencionamos em nossos texto sobre “Resplendor” (2019) as opiniões sobre a Comissão da Verdade que mal aconteceu no país. Por sinal, é possível creditar muito do golpe antidemocrático de 2016 a essa tentativa por esclarecimento. Motivados pela economia (como propusemos na leitura sobre o curta-metragem anterior) ou pelas saída dos ratos fascistas do esgoto, fato é que saíamos de uma companheira de luta para um lambedor de botas de torturador na cadeira máxima.

A tortura relativizada só reverteria se histórias como essa fossem contadas insistentemente (como esse exemplo). Sara Antunes exercita essas formas de experimentar torturantes sensações, chegando a usar um endoscópio como olhar. É invasivo em nossa saúde mental como tem que ser. Dora queria entender a anatomia do povo brasileiro e só não falamos porque a generalização negativa é contraproducente. Mas, sua história está aí – e a sociedade está aqui – dialogando para mostrar que vamos, como sempre, muito mal.

Curta Menarca Lilah Halla Mostra Tiradentes
Menarca (Lilah Halla, 2020)

A sessão da Mostra Panorama se encerra com “Menarca”, curta-metragem de Lilah Halla que fez parte da Semana da Crítica do (não) Festival de Cannes de 2020. Aqui estamos diante do terror atual, das reproduções da sociedade misógina de encontro com uma geração pouco disposta a se curvar ao que sempre “esteve aí”. Usando a metáfora do sistema de proteção das piranhas, a cineasta fala logo na sinopse da “violência que as espera”.

De fato, uma narrativa de gênero que toca fundo na união que leva ao empoderamento. Na autodeterminação como premissa. Aquelas duas meninas, vivendo uma fantasia de resgate, dão uma forte lição de vigília e cuidado – aprendendo desde cedo como se comportar em um mundo hostil.

Karina Buhr surge em trilha original com mais uma maravilhosa canção. Ela, que foi revisitada enquanto parte fundamental da narrativa do longa-metragem “Irmã”, presente na Olhos Livres desse ano, segue sua trajetória de voz enquanto ferramenta de questionamento contra o patriarcado. Peço passagem para deixar a voz de Juliana Strassacapa, que de certa forma também dialoga com essas obras espetacularmente potentes da sessão 4.


Ficha Técnica Mostra Panorama | Sessão 4

Fora de Época (Drica Czech e Laís Catalano Aranha, 13′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Lésbica com familiares conservadores, Renata acaba de votar no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Ansiosa e abalada psicologicamente, ela pede para que os amigos a avisem sobre o resultado e foge para um sítio da família. Sentindo-se deslocada e sem conseguir dormir, entra na casa velha onde sua mãe decidiu passar os últimos dias de vida isolada. Ao limpar o local, Renata encontra um livro que muda sua visão sobre sua mãe e sua própria história, fazendo-a tomar uma decisão sobre como deverá seguir sua vida a partir de agora.
Adelaide, Aqui não há Segunda Vez para o Erro (Anna Zêpa, 20′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Quem foi Adelaide Carraro? Por que me desvendar é uma tarefa árdua?
Tive mais de 5 milhões de livros vendidos? Uma das mais lidas no Brasil entre os anos 60 e 70? Perseguida, acusada de sensacionalista, pornográfica e autora de uma subliteratura? Onde estão meus rastros?
De Dora, por Sara (Sara Antunes, 14′ – Brasil, 2020)
Sinopse: “Querida Mamãe, de Dora por Sara” compartilha trechos de escritos, cartas da prisão e cartas do exílio trocadas entre a guerrilheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos e Clélia Lara Barcelos, recriando o que chamava de “Represa de Dora”, um campo de comunicação entre o confinamento e a possibilidade da útopia. Essa pesquisa conjuga palavras “reais” num tempo poético, tateando tanto os processos que levaram o corpo dela ao suicídio como o inverso: investiga um campo vibrátil para que ela reviva, numa espécie de cartografia do “encarnar”, avessa a desistência.
Menarca (Lilah Halla, 21′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Num vilarejo de águas contaminadas, duas crianças fantasiam com a primeira menstruação, enquanto engendram maneiras de se proteger da quase inevitável violência que as espera.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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