Orfeu Negro

Orfeu Negro | Orfeu do Carnaval Filme 1959 Marcel Camus Crítica Pôster

Sinopse: A trágica história romântica entre a jovem Eurídice e o motorista e músico Orfeu. Os dois se conhecem durante o carnaval no Rio de Janeiro e se apaixonam, mas Orfeu tem uma noiva ciumenta. De acordo com a antiga lenda, o amor do casal é acompanhado de perto pela morte, e ele será capaz de descer aos infernos para salvar a sua grande paixão.
Direção: Marcel Camus
Título Original: Orfeu Negro | Orfeu do Carnaval (1959)
Gênero: Drama | Romance | Fantasia | Musical
Duração: 1h 50min
País: Brasil | França | Itália

Orfeu Negro | Orfeu do Carnaval Filme 1959 Marcel Camus Crítica Imagem

A Natureza do Olhar

A cinematografia brasileira pode considerar “Orfeu Negro” (ou “Orfeu do Carnaval” para algumas traduções) um marco. Mesmo que, à época de seu lançamento, sua trajetória por festivais e premiações tenham o tornado uma obra francesa. Explica-se. Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960 e da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1959, a equipe de produção e a direção de Marcel Camus foram responsáveis pela “naturalização” do longa-metragem. Por muito tempo várias aspas e asteriscos acompanhavam o filme – tipicamente brasileiro, adaptado da peça teatral “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes. Porém, revisitar na programação de Carnaval de Apostila de Cinema fez com que o longa-metragem, estrelado por Breno Mello, fosse – sim – um pouco mais francês do que minhas saudosas lembranças imaginavam.

Antes de prosseguir, vale a menção ao artigo escrito por Roberta Mathias sobre o mito de Orfeu e suas duas passagens pelo audiovisual brasileiro (você pode ler clicando aqui ou ao final desta crítica). Também vale mencionar que “Orfeu Negro” está disponível em sua versão colorida no serviço de streaming da Amazon Prime Video – e essa foi a primeira vez em que a fotografia em preto e branco do Rio de Janeiro do final da década de 1950 deu espaço ao esplendor ainda mais solar daquele espaço.

Revisitar o filme é nos reencontrar com um olhar que não mais existe – para alguns. Fruto de um revisionismo crítico de nossa História, que perpassa os últimos cinco séculos mas respinga muito na idealização de “país do futuro” do século XX. Em nossa entrevista com Edson Farias (professor Doutor da UnB, que você tem acesso no final do texto ou clicando aqui), fiz questão de perguntar o quanto o olhar colonizador imposto por Camus não fez com que as gerações futuras olhassem aquele Brasil de outra forma. E mais: o quanto aqueles que viveram aquela realidade não tiveram suas próprias memórias deturpadas por leituras como essa.

A resposta de Edson, para manter o público, pode ser vista apenas no link. Sobre “Orfeu Negro” muito já se foi falado e o que chama a atenção é o conflito entre forma e conteúdo. Muito bem apontado por Roberta, as leituras, olhares e representações incomodam, soam anacrônicas. Por outro lado, o “Rio de Janeiro continua lindo” – e vai saber porque ainda nos toca. É reviver o que não foi vivido a partir do olhar de deslumbramento do cineasta. Ele nos insere no Morro da Babilônia quase de forma documental – um trajeto que se inicia na barca que vem de Niterói, atravessa a praça XV e desemboca na efervescência da Cinelândia. A mesma que Alfred Hitchcock usou uma equipe de segunda unidade para retratar em “Interlúdio” (1946).

Muitas foram as obras, projetos e personagens que visavam “descobrir o Brasil”. Novamente. Nunca estamos cobertos, nunca tratamos de nossas questões. Somos tipo-exportação e isso parece mexer com o consciente coletivo. Tanto que nos picos de momentos bons e ruins, a nação resgata esse discurso de brasilidade. O que Marcel Camus faz não é muito diferente das obras estreladas por Carmen Miranda em Hollywood ou a animação que usa o privilégio de ser fofa de Carlos Saldanha, “Rio” (2011).

A diferença é que ele tem um toque de pedra fundamental, porque consolida a representação exotizante do cinema nacional dos anos 1940 e 1950 e ainda dá voz à bossa nova enquanto movimento que se junto a outras formas de erguer um Brasil moderno. É coprodução, há um outro elemento (de intercâmbio direto com a França), mas não destoa das formas como enxergamos a chamada Era dos Estúdios (Atlântida no Rio e Cinédia em São Paulo) – e que tem em outro vencedor de Cannes, “O Pagador de Promessas” (1962) a ponte perfeita para o Cinema Novo – que traz outros tipos de problematizações.

As longas sequências dão um ritmo particular ao filme. Reflexo de uma produção de alto custo (não era tão simples atravessar o oceano para fazer um longa-metragem). Mesmo assim, enquanto narrativa temos uma obra que carrega o poder de síntese da época clássica do cinema primeiro mundista. Personagens bem delineados (para não dizer estereotipados) transitam pela tela, cumprem suas funções e são diretos em suas mensagens. No clímax, um outro olhar que flerta com o documental (ou se assume, fica a dúvida), relacionando a busca de Orfeu por Eurídice (Marpessa Dawn) a partir das religiões de matriz africana estabelecidas no país.

Algo muito mais complexo, que os espaços do artigo de Roberta, dessa crítica e das falas de Edson não conseguiriam contemplar – mas desejo de retomar não nos falta. Ao longo dos próximos dias, novos passeios por histórias vinculadas ao Carnaval nos farão repensar e refletir sobre olhares aplicados pela produção cinematográfica brasileira. “Orfeu Negro” foi como reencontrar um velho amigo e descobrir que suas ideias já não batem da mesma forma. Acontece, né? Quem vive o Brasil da última década sabe muito bem de que reencontros estamos falando.

Assista ao Apostila Convida #035 especial de Carnaval, com Edson Farias:

 

Leia o Artigo de Roberta Mathias “A Saga do Orfeu Brasileiro”

 

 

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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