Orfeu

Orfeu 1999 Cacá Diegues Crítica Pôster

Sinopse: Orfeu (Toni Garrido) é um popular compositor de uma escola de samba. Residente na favela, ele se apaixona perdidamente quando conhece Eurídice (Patrícia França), uma nova moradora do local. Mas entre eles existe ainda Lucinho (Murilo Benício), chefe do tráfico local, que irá modificar drasticamente a vida de ambos.
Direção: Cacá Diegues
Título Original: Orfeu (1999)
Gênero: Drama | Romance | Crime | Musical
Duração: 1h 51min
País: Brasil

Orfeu 1999 Cacá Diegues Crítica Imagem

Não Olhe pra Trás

Aquele que tem o poder de fazer o Sol nascer com sua arte voltaria aos cinemas brasileiros em 1999, quando Cacá Diegues lançaria “Orfeu“, segunda adaptação (feita por ele mesmo) da peça teatral “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes. A revisitação do filme se dá em conjunto com a versão de 1959, “Orfeu Negro“, dirigida por Marcel Camus. Por óbvio que uma das motivações de um dos cineastas brasileiros mais famosos de todos os tempos era aplicar um novo olhar sobre o território onde se passa a história. Sai a chegada pela barca, entra a figura clássica do taxista carioca do aeroporto, por exemplo. Todavia, o filme também encontra sua dose de anacronismo.

No artigo que abriu nosso especial de Carnaval de 2021 (e que pode ser lido ao final da crítica ou clicando aqui), Roberta Mathias lembrou de “Cinco Vezes Favela” (1962), também de Cacá. Curioso pensar que aquele conjunto de cinco curtas-metragens (ao lado de Diegues estão Marcos Farias, Miguel Borges, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade) foi lançado apenas três anos após a obra de Camus. É provável que, no futuro, publiquemos um passeio para tentar medir o quanto há de alinhamento e de confronto com a exaltação da brasilidade gestada pela versão original de Orfeu. Por ora, vale o registro de que o diretor já estava ali, produzindo, quando a coprodução Brasil-França ganhou as telas.

O que se destaca logo nos primeiros minutos da “segunda perna” dessa sessão dupla é como Cacá incorpora personagens à narrativa. Além de rechear de grandes talentos o filme (Zezé Motta e Milton Gonçalves como os pais do protagonista vivido por Toni Garrido), abre-se a possibilidade de pluralizar representações. Por ventura, esse é o grande trunfo da versão noventista do mito de Orfeu. Tornando mais complexa a vida do personagem, a transformação de sua vida com a chegada de Eurídice (Patrícia França) faz parte de um processo. O pano de fundo é a trajetória de um jovem negro que ascendeu a partir de seu talento na música e que não quis sair da sua comunidade após a fama.

A favela que Cacá Diegues traz é aquela da coexistência com o poder paraestatal representado na figura de Lucinho (Murilo Benício). Um dos destaques de nossa conversa apontada pelo professor Doutor da UnB Edson Farias (que você assiste no final do texto ou clicando aqui) foi a escolha de um ator branco – já midiaticamente conhecido – para esse papel. Apesar de estarmos em uma produção da própria Globo Filmes (ao contrário de “Sofá“, de Bruno Safdi, onde o elenco global tem seu propósito tratado na nossa crítica), não há qualquer indício de imposição ao cineasta, que atua em total liberdade. E são muitas as escolhas realizadas por ele, que inova bastante em relação ao material original.

Fato é que “Orfeu” encontra seu anacronismo enquanto discurso no audiovisual brasileiro. Se em 2010 mostrou-se fundamental o lançamento de “5x Favela – Agora por Nós Mesmos“, essa construção de realidade de 1999, vista com distanciamento, também tem uma carga simplista – para não dizer polarizante. Não é demérito das pessoas envolvidas na obra (por sinal todos aqui mencionados são importantes formadores de opinião da classe artística). Apenas identificamos os reflexos de uma narrativa que se perdeu pela unidimensionalidade.

O longa-metragem chegou aos cinemas e teve uma passagem de sucesso, com quase um milhão de espectadores e o prêmio de melhor filme do GP do Cinema Brasileiro de 2000. Seu contexto, o da Retomada, se destacou por girar novamente a roda da indústria cinematográfica brasileira, que parecia morta no início daquela década. Todavia, usando os mesmos agentes (ou discípulos desses agentes), não atualizou as leituras de Brasil como se imaginava. Por sinal, é cada vez mais clara a diferença entre dois tipos de cinematografia do período, atuando em paralelo (seria muito reducionismo colocar as obras de Lírio Ferreira e Walter Salles em um mesmo espectro limitante).

A temática social é importante na obra, isso é inegável. A estética apresentada antecipa outras produções bem-sucedidas que usam as comunidades periféricas do Rio de Janeiro como cenário. Cacá Diegues usa na figura de Pacheco (Stepan Nercessian) parte do discurso fascista da ala militarizada da Polícia como contraponto. A simbologia das religiões de matriz africana perdem espaço para a Cristianismo cada vez mais hegemônico. Aqui há um novo ponto de anacronismo que se ergue com o neopentecostalismo hoje estabelecido – e que tornaria uma nova releitura da peça de Vinícius, pouco mais de vinte anos após a estrelada por Garrido, ainda mais interessante.

A violência normalizada, a ausência do Estado, as artes como possibilidades de ascensão. Em uma realidade em que o justiçamento é fundamental para tornar ainda mais crível o destino de Eurídice, “Orfeu” encontra sua dose de exotismo ao colocar Caetano Veloso cantando em um dos barracos. A Apostila de Cinema não cansa de dizer o quanto as possibilidades de um audiovisual brasileiro mais representativo dá a essas revisitações uma sensação de processo de lapidação. Ou talvez seja apenas medo de que alguns traumas espelhados por nossa História encontrem espaço para serem vividos novamente.

Assista ao Apostila Convida #035 especial de Carnaval, com Edson Farias:

 

Leia o Artigo de Roberta Mathias “A Saga do Orfeu Brasileiro”

 

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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