Filhas de Eva

Filhas de Eva Série GloboPlay Crítica Pôster

Leia a crítica completa de “Filhas de Eva”, nova série da GloboPlay.

Sinopse: A trajetória de três mulheres que estão presas a padrões que não as fazem felizes. Após 50 anos de casamento, Stela decide se separar e acaba mudando a vida das pessoas a sua volta.
Criado por: Adriana Falcão, Jô Abdu, Martha Mendonça e Nelito Fernandes
Direção Artística: Leonardo Nogueira
Direção: Felipe Louzada e Nathalia Ribas
Título Original: Filhas de Eva | 1ª Temporada (2021)
Gênero: Drama
Duração: 8h 37min (dividido em 12 episódios)
País: Brasil

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Desaprendendo e Revivendo

Apresentada durante a CCXP de 2019, marcada pelo grande painel do serviço de streaming brasileiro, “Filhas de Eva” chegou no catálogo da GloboPlay no Dia Internacional da Mulher de 2021, mais de um ano após o anúncio. No período, o mundo de transformou e novas dinâmicas familiares se desenvolveram por conta da pandemia do novo coronavírus. Dinâmicas essas que o texto do quarteto Adriana Falcão, Jô Abdu, Martha Mendonça e Nelito Fernandes não tinha como alcançar. Mesmo assim (e até por conta da resistência de parte da população brasileira às mudanças impostas, provocada por um governo propositalmente ineficiente), pouco se perdeu nas representações da série.

Porém, uma experiência curiosa se deu na maratona de um dia em que a Apostila de Cinema assistiu aos doze episódios da, ao que parece ser, primeira temporada do programa: o método de produção (e principalmente pós-produção) trouxe um resultado parecido com produtos pensados no contexto do isolamento social – apesar de toda a fase de filmagem ter acontecido antes.

Algo na direção de Felipe Louzada e Nathalia Ribas parece nos transportar para o mundo atual. Quem teve curiosidade de ver os pequenos trechos da segunda fase da novela “Amor de Mãe” (que entra na programação da TV na próxima segunda-feira) lerá uma coincidência sensorial na forma de operacionalizar as cenas aqui. Um deles é o uso de CGI, fundamental para a diminuição de custos de externas, por vezes perdidas pela mudança de clima que impede que a luz ideal ou a forma pensada para a cena aconteça.

Contudo, a maneira como os realizadores, na direção artística de Leonardo Nogueira, montam algumas passagens, parecem dar a impressão de “novo normal”. Há muita demarcação de espaço, captações de imagens em perspectiva, fundos desfocados, quase nenhuma fala sobreposta, dentre outros elementos que nos conectam a uma narrativa de estranhamento, mas surge como alternativas para o audiovisual de 2020 até a imunização e a queda dos casos que nos permita voltar ao formato tradicional. O que era estilo em 2019, se tornou uma das poucas formas possíveis no ano seguinte.

Antes de falar da história em si (momento em que rechearemos o texto de spoilers), vale registrar que esse abandono da representação territorial foi destacado pelos realizadores em entrevistas. Faz parte do universalismo diminuir o impacto do Rio de Janeiro enquanto personagem, algo muito fomentado pela Globo desde sempre. As divisões de espaço não são individualizados. Santa Teresa e Grajaú, bairros usado como locação junto da Lagoa, não ganham nomes, apenas o conceito formal por trás de suas paisagens – mostradas de forma panorâmica, como ferramenta narrativa menor em comparação com produtos feito para brasileiros ou para exportar a ideia de Brasil. A Praça XV, por exemplo, encontra múltiplas funções – até mesmo uma pequena adaptação que fez do Arco do Teles uma viela de Buenos Aires.

Isso nos leva a uma direção de arte bem menos imersiva em alguns momentos, fazendo uma mediação interessante entre o folhetim e as potências dramáticas de uma minissérie. Talvez incomode aqueles que almejam um purismo ou um vislumbre estético e que adoram falar que tal obra é “Cinema“. Ficamos com a interessante coincidência de gestar um produto sob uma perspectiva, que amplia sua leitura por força de um contexto interno e posterior ao projeto.

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Dito isso, “Filhas de Eva” consegue se desenvolver em uma profusão de acontecimentos capaz de segurar o chamado bing watching, a popular “maratona de episódios” – um hábito que pessoalmente não gosto e faço apenas na necessidade de produzir algum conteúdo que me exija essa perspectiva. A experiência dos quatro roteiristas, anos de serviços prestados para a Globo, faz com que a mediação de imagens mencionadas acima se converta também em narrativa. Adriana Falcão e Jô Abdu estão mais vinculadas a uma comédia dramática, a uma forma de expressar humanismo em transformações provocadas em situações-limite (e o fazem desde versões compactas como em episódios da extensa série “A Grande Família” até de maneira dinâmica e integrada, como em “Mister Brau“).

Já Martha Mendonça e Nelito Fernandes costumam aplicar o absurdo e o deboche em escritos do fenômeno Sensacionalista, aquele que sempre buscamos quando uma notícia abala o país, para nos satisfazer a partir da criatividade de seus criadores. Todavia, apesar dessa reunião e da proposta de alívio cômico, o programa é bem menos engraçado do que muitos possam esperar ser. Inspirado no livro de Martha, de mesmo nome e disponível em cátalogo, há uma busca pelo drama que faz bem, que se alia de forma envolvente com as viradas e os ganchos folhetinescos.

Falo isso sob um viés positivo (sempre bom esclarecer), mas o espectador parece – principalmente na primeira metade – assistir reviravoltas de uma telenovela em uma velocidade maior. Uma experiência imersiva que as novas dinâmicas de nossa rotina tem tornado cada vez mais difícil – e a presença de programas antigos e dos atuais na GloboPlay, para assistir quando possível, vem permitindo resgatar. Para quem admira a linguagem e está distante, traz um pouco essa ideia de reencontro, principalmente com um trio de protagonistas de personagens marcantes e todas em trabalhos carregados de inspiração.

Porém, duas diferenças chamam a atenção e diferenciam “Filhas de Eva” do produto preferido dos brasileiros, que ocupa parte de nossas noites há décadas. O primeiro é que todo esse espiral de crise, potencializado nos primeiros seis episódios, nos leva a uma trajetória diferente de uma novela. Se no folhetim o grande peso do drama é afastado do final, que nos reserva fechamentos de núcleos e personagens com uma ideia de reparação, de justiça – aqui o drama e as descobertas são ampliados até o último minuto. Mesmo identificando uma cadência em certos momentos, o que torna o episódio sete uma transição e do oito ao onze um desenvolvimento mais lento, a maneira como os ciclos se fecham (minimamente, com espaço para outra temporada) no último capítulo é bem diferente do que o público está acostumado.

A outra diferença é na abertura, talvez uma das grandes marcas da montagem do programa. Com a canção totalmente viciante da cantora canadense GRAE chamada “Your Hands“, as imagens que compõem os créditos não se repetem. Na forma comumente utilizada para prender ainda mais a atenção (e deixar a música na nossa cabeça por mais tempo), a introdução nos antecipa de forma desfocada o grande gancho daquele episódio. Ou seja, impossível apertar o botão “pular a abertura” do aplicativo. Fique por aqui se você não deseja spoilers, nem mesmo a mínima revelação de aspectos da trama.

Veja o vídeo de “Your Hands”, de GRAE, música de abertura da série:

Filhas de Eva” possui, assim como boa parte do conteúdo televisivo da Globo ao longo dos anos, um recorte classista. Seus criadores atualizam (um pouco) a narrativa de subversão de valores da hipócrita elite branca brasileira, com o aditivo das modernas formas de corrupção e combate a elas. No recheio, ergue vários pilares de redentoras tramas de mulheres que se reconstroem, fugindo de uma zona de conforto provocada pela lógica do patriarcado. Um discurso didatizado pela jovem Dora, personagem de Débora Ozório. A base da história é tradicional ao extremo – e que bom que assim o seja, já que consegue captar o espectador, também, tradicional.

Uma abertura em um casamento ou festa de bodas de ouro (como é o caso aqui) dá um ar folhetinesco de imediato. Fundamental para que texto e direção quebrem essa proposta, em rompimentos constantes com o andamento das tramas. Quando falamos que parecia que a produção da obra aconteceu no contexto da pandemia, é porque há um enxugamento dos núcleos da série, uma diminuição de cenários que se impõe pelo orçamento também menor, mas que sempre nos deixa com poucos personagens em cena. Se assemelha na maneira como pontos isolados da história se unem para alguma ação, não há tanto um espiral narrativo – mas que funciona porque sedimenta cada personalidade exposta ali.

A primeira que inicia a revolução silenciosa é Stella (Renata Sorrah). Em suas bodas de ouro com Ademar (Cacá Amaral), ricos e poderosos lotando um salão da área nobre do Rio de Janeiro, um vídeo sobre tudo o que ela viveu a faz pensar sobre o que ela não viveu. Sua neta Dora, novamente, aparece na ponta de uma geração mais consciente da necessidade de autonomia feminina de imediato, o primeiro passo da luta pela igualdade de oportunidades. Intermediando gerações temos a imagem de Lívia (Giovanna Antonelli), uma mulher bem-sucedida no trabalho, mas que – ao dividir espaços com o marido Kléber (Dan Stulbach), sofre constante apagamento.

No evento, Stella informa em praça pública que quer o divórcio. Lívia desaba, Dora acha o máximo e Kléber, transformando a crise em oportunidade, começa a se envolver (omitindo ser casado) com Cléo (Vanessa Giácomo), que ali estava para entregar o bolo da festa. Uma dupla que, em uma época onde a rivalidade entre mulheres era alimentada por narrativas ficcionais, teria o potencial de criar um Esquadrão Suicida brasileiro, formando um casal da inesquecível Aline de “Amor à Vida” (2013-2014) com o Marcos e sua raquete de tênis de “Mulheres Apaixonadas” (2003) – sem esquecer da icônica Nazareth Tedesco de “Senhora do Destino” (2004-2005).

Série GloboPlay Renata Sorra Crítica Imagem

O acerto de “Filhas de Eva” é não parar aqui. Cada personagem tem sua própria estrutura – e todas despertam nosso interesse. Dora está envolvida com movimentos feministas junto às amigas secundaristas, mas ainda se assusta com o velho medo de “perder” a virgindade (as aspas já complexifica e denota uma problematização que não tenho lugar de fala para desenvolver – e que a série trata de maneira mais introspectiva). Kléber aceita o convite para falar em público em detrimento de Lívia e alavanca sua carreira da mesma maneira que o antagonista de “A Esposa” (2017), grande trabalho de Glenn Close. Ele é uma fraude, tanto no pessoal quanto no profissional. Lívia, parte da época em que as mulheres se coloca no mercado de trabalho mas sob o olhar de uma sociedade que não as valoriza, insiste na tese de que precisa “salvar” se casamento e, em paralelo, pratica uma auto sabotagem.

Parte da figura de Antonelli alguns dos grandes momentos da primeira metade da temporada. Por ter perdido a zona de conforto inconscientemente, ao contrário da mãe, suas decisões são mais impulsivas e ingênuas, o que acaba gerando novos problemas. Já Cléo sofre o peso da deslegitimização. Fora da lógica da elite, a sua mãe (vivida por Analu Prestes) é diferente, faz vista grossa a todas as questões que envolvem o filho homem e lê a filha pela régua da falta de credibilidade. Vulnerável, ela se envolve cada vez mais com o Kléber.

O que move a trama de “Filhas de Eva”, entretanto, é Stella. Seu divórcio parecia o início de uma nova vida, tal qual a divertida sitcom da NetflixGracie e Frankie“. Porém, não é bem assim. Ademar está atolado até o pescoço em um esquema de lavagem de dinheiro que a mantém sob o risco de cair de vez no buraco, já que ela é uma das laranjas da operação. A frase “acabou a mamata“, dita por ele quando a esposa confirma que sairá de casa, é a típica fala que explica tudo em uma pequena alegoria do contexto de nossa sociedade. Ela não sabia que o grande obstáculo à implosão do esquema era fazer parte dele. Stella sempre foi um instrumento.

Em termos de linguagem, a direção de Felipe Louzada e Nathalia Ribas traz uma convenção interessante. As primeiras sequências têm uma câmera circular, passeando pelo grande salão. Desfeito esse mundo ideal, recebemos imagens através de espelhos e na velha tática de se colocar no cômodo ao lado, no melhor voyeurismo estilístico. Principalmente porque suas protagonistas, mesmo com a urgência na transformação, fogem algumas vezes do enfretamento. As decisões de Stella e Lívia são conflitantes no início. Uma sai de casa, a outra faz uma tatuagem em homenagem ao marido. Esse antagonismo natural entre mãe e filha, uma tensão comum, se manterá até o fim, como uma grande barreira final de acolhimento e sororidade.

A articulação das mulheres do elenco é bem mais crível e menos alegórica do que outras representações (e há quem diga que bebe-se da fonte de “Big Little Lies”, série norte-americana que, confesso, não assisti ainda). Ficando no Brasil, se comparamos com o sucesso da novela das 7 “Quatro por Quatro” (1994-1995), de Carlos Lombardi, observamos que não há que se falar em vingança onde é preciso, sobretudo, libertação. É possível que o sucesso da série e novos episódios pavimentem novos terrenos, mas aqui o mote é o resgate do protagonismo da própria vida. Ao final do quinto episódio, o artigo que Lívia é convidada a escrever para o jornal onde trabalha Fábio (Marcos Veras) surge como fato gerador. A partir dali, ela começa a compreender a mediação, por ser mãe, filha e amiga das pontas envolvidas.

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É quando “Filhas de Eva” espalha mais sua narrativa. A subtrama de Cléo, com seu irmão e mãe adicionam um novo drama, com novas dinâmicas de vulnerabilidade e fragilidades. Dosando os acontecimentos, o acerto da obra é apostar na fluidez dramática, ao contrário do (prometido) alívio cômico, que surgiria provavelmente atravessado. Maratonar o programa pode gerar certo cansaço nos episódios nove a onze, mas não pela história, mas por conta dessas demarcações e um certo antinaturalismo. As reflexões tardias de Lívia não são capazes de compreender por completo a mãe, já que é difícil abandonar a imagem do pai enquanto figura de referência.

Com isso, o desmoronamento dos pequenos impérios masculinos que servem de antagonismo é devagar – e difícil. Apesar desse ritual elitista no estilo, o ritmo do programa encontra uma representação muito fiel da realidade nesse quesito. Alguns personagens não encontram tempo de tela para desenvolver outros pontos que poderiam render. O embate ético de Fábio enquanto jornalista, por exemplo, aparece de forma esporádica, mas ao final entendemos que ele será uma ponta solta para um possível retorno (ou não). Não há nada do que se lamentar porque o que ganha terreno o faz com muita potência.

Contrariando a dinâmica tradicional, o episódio final é carregado de melancolia. Antes tarde do que nunca, mas o tempo passou e cicatrizes ficaram para todas elas. É como se nos lembrasse que qualquer recuo pode gerar novas regressões. A vigilância é constante, assim como a reflexão e a manutenção de vínculos. Nos diversos picos dramáticos que se acumulam, qualquer tolerância das personagens baseada na condescendência da sociedade com os homens se esvai (inclusive, esperamos, na mãe de Cléo). Não fica gosto de redenção, nem tampouco punições pedagógicas. Fica a libertação, mesmo que soe parcial ou temporária em alguns casos.

É bem provável que elas retornem, apesar do anúncio da aposentadoria de Giovanna Antonelli. Esperamos que haja uma exceção porque todo o aprendizado das “Filhas de Eva” ainda tem muito para nos ensinar.

Veja o Trailer de Filhas de Eva:

Lista de Episódios:
Ep. 01 (47min)
Ep. 02 (37min)
Ep. 03 (43min)
Ep. 04 (41min)
Ep. 05 (42min)
Ep. 06 (45min)
Ep. 07 (44min)
Ep. 08 (44min)
Ep. 09 (40min)
Ep. 10 (43min)
Ep. 11 (44min)
Ep. 12 (47min)

Clique aqui e leia sobre outras produções da GloboPlay.

 

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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