Sinopse: Em “A Boa Esposa” Paulette Van Der Beck (Juliette Binoche) e seu marido dirigem a escola de limpeza de Bitche na Alsácia há muitos anos. Sua missão é treinar adolescentes para se tornarem donas de casa perfeitas no momento em que se espera que as mulheres sejam subservientes ao marido. Após a morte repentina de seu marido, Paulette descobre que a escola está à beira da falência e tem que assumir suas responsabilidades. Mas enquanto os preparativos estão em andamento para o melhor programa de TV da competição doméstica, ela e suas animadas alunas começam a questionar suas crenças enquanto os protestos de maio de 1968 em todo o país transformam a sociedade ao seu redor.
Direção: Martin Provost
Título Original: La Bonne Épouse (2020)
Gênero: Comédia
Duração: 1h 49min
País: França | Bélgica
Desaprender a Lição
Chegando ao circuito comercial brasileiro, após passagem pelo Festival Varilux 2020, “A Boa Esposa” é uma divertida sátira sobre um espaço criado pera burguesia ocidental que, assustadoramente, existe até hoje. Lembrando um dos grandes sucessos de audiência da Apostila de Cinema (a crítica do documentário “Beleza Tóxica” de 2019) Juliette Binoche vive a diretora de uma espécie de Escola de Princesas (apesar da versão Brasil Bolsonaro ser ainda pior, já que lida com crianças). A diferença é que no filme dirigido por Martin Provost estamos à beira do ano de 1968, em que um encontro de demandas da sociedade fez florescer a esperança de um mundo melhor.
Ainda é possível que muitos não viajem no deboche no qual a atriz aplica na protagonista Paulette Van Der Beck. O primeiro terço do longa-metragem prima por qualificar aquele grupo como moças que desejam uma formação tradicional de prendadas esposas, belas, recatadas e do lar. Contudo, os ventos de uma Paris cada vez mais em polvorosa começam a soprar no interior da França e algumas delas se questionam o porquê de uma ilibada perfeição imposta sem que elas tivessem muita margem de escolha.
Com o auxílio de uma freira, Paulette está ali como figura-modelo da honra que há por trás de “ser mulher”. Todas as limitações de uma vida moldada para reproduzir a misoginia é vendida como um privilégio. Nada de falar alto, se vestir mal ou se negar a satisfazer qualquer desejo dos maridos. Eles, pelo contrário, tudo podem – em aulas que pregam, ao mesmo tempo, a abstinência etílica de Eva e a tolerância aos exageros alcóolatras de Adão. A visão engessada e de resistência cega a tudo o que não é o machismo cuspido e escarrado reserva momentos divertidos, como o receio de que uma moça, apenas por ser ruiva, trará problemas a mais naquela comunidade feita para obedecer. Tudo o que não é a aceitação desta dádiva de ser perfeita é lida como ameaça comunista, claro.
Trançando dinâmicas pouco inovadoras, “A Boa Esposa” quer desenvolver sua trama alegórica com boas doses de exagero. Elas funcionam bem, há constantes deslocamentos de uma lógica temporal para modernizar a narrativa. O espectador mais antenado e atualizado gostará desta proposta bem humorada de assistir à derrocada dessa escola que se nega a sair da Idade Média – enquanto outros, mais alinhados com o conservadorismo miliciano brazuca, achará bastante comunismo, esquerdismo e lacração no roteiro de Provost (ao lado de Séverine Werba). Não serão capazes de enxergar o anacronismo de suas opiniões, mesmo quando uma obra refaz os passos da História voltando mais de cinquenta anos no tempo – quando isso tudo já era ultrapassado.
Contudo, o cineasta (que também realizou “Séraphine” em 2008) parece hesitar em se aprofundar nesta alegoria. Dá alguns passos atrás no que parecia ser um delicioso desbunde e cria um segundo ato bem menos corajoso, mais adequado para as possibilidades reais que as moças de fino trato representadas por Binoche obteriam enquanto avanço. Em uma das melhores sequências do longa-metragem, em um banquete promovido pelo instituto, o filme tira de cena o marido da protagonista. Uma chance de antecipar certas transformações de uma percepção de mundo em franca decadência.
Quando parecia que iríamos adiante nas experimentações de algumas personagens (inclusive de afeto) e na virada de chave a partir da ocupação da cidade, dando um ar um pouco mais cosmopolita, “A Boa Esposa” nos lembra que nada segue tão adiante sem um pouco de sentimento. Paulette parece um pouco dividida em ter que exercer uma autonomia imposta (começando pela necessidade de dirigir e tomar conta das finanças da escola) e a busca por reacender a chama do amor. A pieguice da expressão é proposital e coerente com esta outra personalidade de uma obra que deverá agradar e desapontar pelo mesmo motivo.
Há quem veja este equilíbrio entre a revisão de conceitos e a manutenção do que lhe convém como um acerto do diretor e há quem entenda que isso tira a força de uma criação com um considerável poder de mandar às favas uma idealização danosa de divisão de funções e tarefas entre homens e mulheres. Ou seja, não há redenções forçadas – mas fica a sensação de que faltou radicalizar mais um pouco, já que as duas pontas da história sugerem isso. Por sinal, a última cena é divertida e contagiante. Redentora, de fato – apesar de não nos envolvemos tanto na história para permitir uma empolgação ainda maior.
Elementos técnicos e de linguagem garantem que “A Boa Esposa” seja entretenimento de alto nível. Não apenas em seu design de produção, mas também por trazer em sua periferia a forma como a mídia hegemônica sempre contribuiu para a resistência conservadora (usando simulação de uma reportagem de TV), entre outras questões. Ao tentar mostrar que há diferentes tipos de realização enquanto indivíduo e que parte da luta por igualdade de gênero passa também por pensar seus próprios exercícios de frustração, o filme ganha um pouco na complexidade e perde no discurso. Um caminho pouco usual para uma comédia nos moldes no qual ela se desenvolve, mas o suficiente para expor ao ridículo quem ainda acha que machismo é questão de opinião.
Veja o Trailer: