A Cidade dos Abismos

A Cidade dos Abismos Crítica Filme Poster

10º Olhar de Cinema | BannerSinopse: Um assassinato, na véspera de natal, estabelece uma insólita conexão entre figuras melancólicas e marginais da noite paulistana, dando início a uma busca vertiginosa por justiça nos submundos da maior metrópole do país. “A Cidade dos Abismos” atualiza, pelas lentes políticas contemporâneas, a invenção, a irreverência e o onírico de filmografias de outros tempos, tornando próprio e singular aquilo que herda desse passado. Por ironia ou mau presságio, em sua atmosfera fúnebre, refletem também as marcas de um tempo que ainda estava por vir.
Direção: Priscyla Bettim e Renato Coelho
Título Original: A Cidade dos Abismos (2021)
Gênero: Thriller | Drama
Duração: 1h 36min
País: Brasil

A Cidade dos Abismos Crítica Filme Imagem

Um Trem (Paulistano) para as Estrelas

A Cidade dos Abismos” já tinha sido destaque na primeira metade do 10º Olhar de Cinema, que realiza duas janelas de exibição de seus filmes. Porém, confesso que não esperava que me visse, no meio de uma madrugada fria para os padrões cariocas (mesmo chegando na metade de outubro), em uma viagem para outra madrugada, a paulistana, quase como um trem da CPTM, incluindo não apenas as imagens, mas os sons da realização de Priscyla Bettim e Renato Coelho.

Há algumas semelhanças da dupla de cineastas com os exercícios experimentais do Distruktur, de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, com quem a Apostila de Cinema teve a oportunidade de conversar quando “Oráculo” (2020) foi exibido na última Mostra de Cinema de Tiradentes. Porém, há um pouco menos de dilatação, uma proposta mais comedida de fluxo e de desapego à narrativa. Há interconexões, que se formatam durante todo o primeiro ato e se encerra quando o inferninho, no qual boa parte das ações acontece, é palco de um assassinato.

Até chegar nesse estágio, os cineastas distribuem suas referências enquanto pesquisadoras e amantes da produção nacional dos anos 60 e 70. Resgatam a marginalidade na forma, para atualizar essa relação entre agentes invisibilizados e a contemporaneidade no conteúdo. Sempre digo que São Paulo se ergue para qualquer por uma ótica bem interessante: sua dimensão e complexidade nos permite sermos invisíveis – desde que percebemos que essa opção é o exercício de um privilégio, já que há quem precise ser invisível por questão de sobrevivência.

Veja o Trailer:

O que torna “A Cidade dos Abismos” ainda mais apaixonante é que ele, em meio às suas criações pelas filmagens em película de 16 e 35mm e Super-8, com granulações capazes de nos transportar para aquele espaço pelo qual sentimos tanta saudade; em meio às suas homenagens a movimentos cinematográficos do país sempre tão atacados, pouco respeitados e – agora ainda mais – pouco preservados; e em meio às suas atualizações de discursos que dão o protagonismo à Veronica Valenttino, sem que a politização dos corpos e as representações de gênero se descolem do restante da múltipla abordagem da obra; é, também um filme de Natal.

Com quebras de expectativa a partir da música, transposições para o onírico pelos sons de tempestade e alucinação, pela marca do insólito sem tirar o verniz de realidade. Até as incompletudes ou incongruências do longa-metragem casam bem com o todo, desde a diagramação da tela e a textura da imagem que nos sufoca até diálogos que surgem abafados, de compreensão mitigada, para que os personagens também se protejam do próprio espectador, ávido em sua curiosidade.

Quando uma quase quebra de quarta parede ocorre, ela consegue ser performática e sombria, talvez algumas das múltiplas características dessa narrativa. O som do piano aparece marcante, quase um experimento à parte, até que a protagonista, em determinado momento, define aquelas pessoas: “somos fantasmas“. É isso, com eles conhecemos a São Paulo que muitos escondem para ter para si e explorar seus desejos ocultos. Uma união de neurose, melancolia e prazer, que reúnem o poder e o dever nos quesitos invisibilidade e marginalidade.

Um território no qual o blefe tem muito valor, como percebemos ao final quando, após ritos de despedida, a Morte teria que jogar pôquer e não xadrez e falsear de forma mais ardilosa. Uma constante inquietude e o medo de se tornar arquivo queimado da força opressora e corrupta sempre pronta para dar o bote. Com a fachada da Cinemateca Brasileira, trechos de “Limite” (1931) de Mário Peixoto, participação do Padre Júlio Lancelotti e um plano-sequência que marca ainda mais uma obra que encontra, na musicalidade, seu melhor tom.

A se lamentar apenas que “A Cidade dos Abismos“, primeiro longa-metragem de Priscyla e Renato, com um trabalho espetacular em película e um desenho de som particular, chegue a nós, por força das circunstâncias, no virtual. Fica anotado que devemos correr na primeira oportunidade de rever o filme na sala do beco mais escuro que existir na cidade de São Paulo.

Assista à conversa de Camila Macedo com a equipe do filme “A Cidade dos Abismos”:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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