A Febre

A Febre

Sinopse: “A Febre” traz a história de Justino (Regis Myrupu), um indígena da etnia Desana, que trabalha no Porto de Manaus como segurança de carga. Enquanto se prepara para se despedir da filha, recém-aprovada no vestibular de Medicina na Universidade de Brasília, ele é acometido por uma misteriosa febre.
Direção: Maya Da-Rin
Título Original: A Febre (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 38min
País: Brasil

A Febre

Identidades e Suas Necessidades

A Febre“, vencedor de cinco prêmios no Festival de Brasília de 2019 – que torcemos muito para que não seja o último – foi um dos integrantes da semana de pré-estreias promovidas pelo Espaço Itaú Play em parceria com o Looke. Além do principal, o de filme pelo júri, o longa-metragem dirigido por Maya Da-Rin foi contemplado com o troféu de melhor fotografia e som. Elementos que saltam aos olhos do espectador a partir de uma aplicação que mescla o slow cinema com o olhar etnográfico regionalista. Uma mistura que faz com que algumas produções audiovisuais brasileiras dos últimos anos encontre um nicho universalista em importantes festivais ao redor do mundo.

A cineasta aplica essa lógica em uma obra que traz o protagonista indígena. Assistir “A Febre” na sequência da Sessão 08 da Mostra Lona 2020 foi das experiências mais interessantes. Isso porque, mesmo com toda a preocupação em ser fiel a uma representatividade, fazendo de sua primeira obra ficcional um híbrido com a linguagem documentarista muito latente, Da-Rin não deixa de ser um olhar estrangeiro. Um olhar muito competente e valoroso, mas ainda sim estrangeiro.

Enquanto que, nos curtas-metragens realizados por coletivos de lideranças indígenas, a absorção da territorialidade pela obra era natural, quase espontânea, aqui a diretora precisa fazer composições cênicas. Às vezes acerta muito, principalmente na manutenção da sequência independente da presença humana. Fragmentos de espaços que produzem bonitas imagens, como um plano que nos mantém observando um cacho de bananas pendurado no quintal mesmo quando o protagonista Justino (Regis Myrupu, vencedor do prêmio de melhor ator não apenas no Festival de Brasília, mas também no Festival de Locarno) parece ter entrado na casa. Em outras situações essa busca pelo registro semi-documental é mais impositiva – como em uma cena em que o mesmo Myrupu faz um grande monólogo sobre sua vida em um escritório do seu emprego. Momentos em que há um tom que beira o antinaturalismo.

A Febre“, inegavelmente, consegue cumprir um de seus flagrantes objetivos. Ao trazer um protagonista que trabalha como segurança no Porto de Manaus enquanto enfrenta uma situação atípica em casa, consegue costurar com eficiência o diálogo sobre relações familiares e laborais modernas, convivendo em paralelo com a preocupação em manter uma cultura oprimida e com forte carga de ancestralidade. Com pouca narrativa e poucos personagens, estabelece símbolos: a filha de Justino se prepara para estudar medicina na Universidade de Brasília; enquanto o neto é uma criança que começa a ter contato com as histórias de seus antepassados; já a senhora que aparece sem documentação (no caso, sua identidade – assim verbalizada), com a tal febre no hospital, não fala um idioma identificável, podendo ser uma ameaça perigosa tanto de dentro da comunidade como importada.

Há uma constante representação de identidade, de sua busca e de suas ameaças. Indígenas precisam conviver há algumas décadas com essas múltiplas preocupações e anseios, enquanto a todo instante a sociedade parece querer justificativas tolas para seus intercâmbios culturais. Nesse quesito, Maya Da-Rin é de uma abordagem bastante respeitosa, sem apelar para o lugar-comum de criar situações onde essa inserção de Justino na vida do homem branco poderia ser caricata. Um homem que, ao descer no ponto de seu ônibus, não se transforma magicamente em outra pessoa. Ele é um só, o tempo todo. Portanto, a unidade fílmica, não alterando nenhum elemento narrativo ou estético, é fundamental para que essa sensação seja compartilhada com o espectador. Um exemplo visual é Regis Myrupu aparecer, em mais de uma oportunidade e nas mais diversas situações, enquadrado frontalmente – exatamente como na imagem do pôster longa-metragem.

O longa-metragem não merece descrédito por representar sem ser representativo por trás das câmeras. A ampliação de seu alcance, com exibições em Locarno e também no Festival de Toronto, justificam essa suposta chancela. Também não possui demérito por se valer de uma fórmula do cinema de arte, bem recebido internacionalmente, para tratar uma temática cada vez mais presente no audiovisual brasileiro. É uma obra pesada, em que a sensação de tempo pode surpreender negativamente uma parte do público. Tanto para os que gostarem quando para os que não gostarem (entendendo ser esse conceito subjetivo um fator ainda preponderante para grande parte das pessoas), é preciso dizer que, em volta desse importante e premiado filme de Maya Da-Rin, há uma quantidade gigantesca de realizações do Cinema Brasileiro dos últimos anos que precisa ser igualmente vista. Esperamos que “A Febre” seja, para quem se impactou ao visitá-lo na semana de pré-estreias especiais, uma enorme porta de entrada.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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