A Jangada de Welles

A Jangada de Welles Poster

Sinopse: Em 1942, Orson Welles filmava no Brasil o documentário It’s All True (É Tudo Verdade), sobre o carnaval carioca e os jangadeiros cearenses. O líder desses pescadores, Manuel “Jacaré”, morreria acidentalmente nas filmagens no Rio de Janeiro. Esse fato evoca memórias do Estado Novo, da atribulada passagem de Welles pelo Brasil e da luta dos jangadeiros por direitos trabalhistas.
Direção: Firmino Holanda e Petrus Cariry
Título Original: A Jangada de Welles (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 15min
País: Brasil

A Jangada de Welles

Consciências e Inconsequências

A Jangada de Welles” poderia seguir o caminho fácil da historiografia do Cinema e replicar cansadas lendas sobre o diretor norte-americano Orson Welles. Só que os diretores Firmino Holanda e Petrus Cariry têm uma clara proposta de entender melhor a sociedade cearense, principalmente a luta dos jangadeiros iniciadas na década de 1930 – e a passagem do cineasta é meramente um detalhe, que pela reverberação acertadamente se vale como fio condutor da obra.

O documentário, assistido na programação da 9ª Mostra Ecofalante, pode ser lido como um encontro de duas consciências, criadas como produto de suas comunidades. Jacaré, líder das reivindicações trabalhistas dos homens do mar, perdeu a vida durante as filmagens de “É Tudo Verdade“, obra inacabada de Welles – lançada em trechos no ano de 1993. Recebendo uma missão do seu país, ele chega ao Brasil para filmar duas das quatro partes daquela que seria a terceira produção dele para a RKO. As duas primeiras foram “Cidadão Kane” (1941) e “Soberba” (1942), que contribuíram para o magnetismo causado pela prodigiosidade iniciada com a transmissão radiofônica de “Guerra dos Mundos” em meados da década de 1930.

A primeira parte seria o registro do Carnaval carioca, um cumprimento da politica da boa vizinhança que o governo dos Estados Unidos difundiu na América Latina, reflexo direto das crises que levaram o mundo à Segunda Guerra Mundial. Um momento importante do século XX e que explica muito da dominação cultural e do porquê saímos correndo a cada abanada do rabinho do Mickey Mouse que o conglomerado Disney nos oferta. Atuando de forma inteligente em mais de uma frente, os norte-americanos aumentavam a lista de aliados na luta contra o fascismo e brecavam a expansão dos ideais comunistas na região. O problema é que Orson Welles não se interessava muito por manifestações como o mardi gras brasileiro (no entendimento do diretor). Portanto, ele teria liberdade artística para definir o outro eixo temático de seu documentário no Brasil.

Com isso, ele chega a Mucuripe, bairro litorâneo de Fortaleza, imortalizado na canção composta por Fagner e Belchior. Ali sua vida se cruza com a de Jacaré e permite que um longa-metragem de objeto universalista, capaz de angariar público ao redor do mundo pela figura icônica de um representante do passado de Hollywood, se transforme em um registro do Brasil. Até hoje, há quem entenda que Jacaré foi assassinado a mando de Getúlio Vargas, inimigo declarado do jangadeiro, opositor do político em sua fase ditatorial inaugurada em 1937 com o conhecido Estado Novo.

Holanda e Cariry fazem esse registro em “A Jangada de Welles“, mas não transformam o documentário em uma peça investigativa. Pelo contrário, se valem de um forte material bruto, de fotografias e imagens de arquivo para cruzar as duas biografias. Ao final, ficamos com a sensação de que tanto Jacaré quanto Orson não conseguiram colocar em prática suas convicções e viram a forma reducionista como qualificamos o outro se voltarem contra eles. O brasileiro, assim como pessoas de origens humildes que despertam consciência política, foi alçado automaticamente de “analfabeto” para “comunista” – como se só existe essas duas possibilidades aos representantes reais do povo, que defendem suas causas. Já o norte-americano se viu dentro de um establishment que engessava sua arte, quando Hollywood aplicava censura e não queria saber de conflitos políticos que afetassem seus ganhos.

O documentário revela um fazer audiovisual de Orson Welles que confirmam não apenas seu pioneirismo (exaustivamente dissecado – e decifrado – em análises de “Cidadão Kane”), mas nos faz pensar como ele agiria nos dias de hoje. O cineasta aplicava formas modernas não apenas na linguagem, mas também nos procedimentos. A utilização de populares como atores e a união com uma produtora independente de Fortaleza são alguns exemplos mencionados no filme. Por fim, ficou a frustração do diretor de não conseguir finalizar o longa-metragem ao seu modo, culpa da forma pasteurizante com a qual os Estados Unidos trata, na maioria das vezes, a arte cinematográfica.

Lá em Mucuripe Jacaré e Orson Welles se tornaram passado. O que ficou foi o reflexo mais hodierno das grandes cidades e de sociedades que cederam à especulação imobiliária. A geografia local se comprometeu, com o avanço de gigantes prédios na orla, enquanto em outros pontos o processo de favelização se acelerou. Nelson Rockfeller teria mais orgulho deste cenário do que qualquer um envolvido na produção de “É Tudo Verdade” – a prova de que aquilo que os Estados Unidos pensa economicamente para a América Latina se concretizou.

Um bonito filme de resgate de depoimentos, que nos traz o improvável encontro de duas mentes que tinham muito a contribuir com suas sociedades. De certa forma, sua relação tornou ainda mais difícil o avanço dos ideais dos dois – a luta trabalhista ou a revolução pela arte. É com esses gigantes de concreto na beira da praia, que “A Jangada de Welles” se despede, para que menos uma história seja silenciada e apagada, posto que sumiu aos olhos de quem vê a Fortaleza do século XXI.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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