A Matéria Noturna

A Matéria Noturna Filme Crítica Poster

10º Olhar de Cinema | Banner Sinopse: A cidade brilha e parece saber tudo sobre Jaiane (interpretada por Shirlene Paixão), filha de Iansã que chora e ri na mesma cadência. Já de Aissa (Welket Bungué), moçambicano que viverá dias inesperados na capital capixaba, ela nada sabe. A tranquila ousadia narrativa e as imagens luminosas proporcionam o melhor dos mundos ao calor gostoso dos personagens – e assim descobre-se que, nessa Vitória, o tempo livre é o tempo dos encontros que abafam as desordens do coração com a cervejinha na mesa do bar, a roda de samba, o banho de mar, o flerte, a dança, os beijos…
Direção: Bernard Lessa
Título Original: A Matéria Noturna (2021)
Gênero: Romance
Duração: 1h 29min
País: Brasil

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A Sã Idade

Três atos. Três pessoas. Uma real e duas ficcionais. Será mesmo? Nada é certo quando adentramos um novo mundo, com seus princípios, regras e costumes particulares. Cada obra audiovisual é assim e “A Matéria Noturna” não deveria ser diferente. A produção brasileira, dirigida por Bernard Lessa e parte da mostra Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema, tem estrutura, narrativa, linguagem e estética própria. Ou propostas de. Uma confluência de talentos e de objetivos, alguns verbalizados por seus realizadores – e outros complementadas pela imaginação de quem assiste.

Falar do que circunda o filme deve ser parte importante de uma eventual linha de raciocínio. Portanto, o longa-metragem pode ser descrito como o encontro de Jaiane (Shirlene Paixão) e Aissa (Welket Bungué). O primeiro terço nos mostra uma mulher em constante transição pela cidade de Vitória. Motorista de aplicativo, amiga de Roberta (recém-desempregada), ela vai perdendo a capacidade de percepção pela estafante necessidade de produzir. Algo que se vincula com boa parte dos espectadores, tanto em forma quanto em conteúdo. Estamos cansados de repetições, de uma rotina que nos exige cada vez mais e de métodos de desanuviamento pouco inspiradores. Ou, talvez seja apenas reflexo de uma idade em que esse cenário faz todo sentido.

A protagonista do ato inaugural está exausta a ponto de dormir no gramado de um parque e ficar trancada lá dentro. Isso porque, todos os agentes em torno dela, por mais numeroso que seja esse efetivo, também circulam pela cidade recheados de objetivo – e se preocupar com o outro, sem dúvida, não é um deles. Nada parece se revestir de sentido, tudo é automatizado, até o movimento do braço levantado o copo americano do boteco e calibrando nosso corpo com um pouco mais de cerveja. O mar, então, é uma esperança para Jaiane.

E é de lá que surge Aissa, um trabalhador embarcado, moçambicano que inicia o segundo ato de “A Matéria Noturna” com uma transferência total de perspectiva. Com ele acompanhamos a curiosidade e as oportunidades de quem chega em um novo porto. A mudança bem-vinda, possibilidades de outras vivências e tudo o que boa parte do público – em seu constante desejo de fuga (como consequência do infinito cansaço que o assola) – projetará. Iansã promoverá um encontro, usará o vento que antecede a tempestade para fazer os personagens protagonizarem juntos o terceiro ato, em um prazeroso romance ao som do samba.

Na conversa de Bernard Lessa e Welket Bungué com Leonardo Bomfim no canal oficial do Olhar de Cinema no YouTube (e que você assiste ao final da crítica), podemos intuir que há uma relação triangular entre o que o realizador pensa de Jaiane e Aissa e de suas próprias reflexões. O cineasta retornou a Vitória depois de dez anos, aplicou um olhar um pouco estrangeiro e um pouco saudosista. Potencializa essa experiência pela fotografia espetacular de Safira Moreira e forja um casal com relações diferentes a esse território.

Enquanto a mulher parece sem força de superar a letargia de uma perspectiva ruim, de um país em crise, que não lhe dá emprego não-precarizado e não lhe permite sequer exercer o direito de sonhar, o homem que chega carrega consigo a ideia de que – apesar de tudo isso – viver é uma das melhores opções, mesmo nesse inferno. Por isso, Lessa não quis uma narrativa episódica e sim de encontros – apenas nos mostrando o que mudou a partir dele, abordando em separado o passado imediato dos dois. Optando pela câmera na mão em oposição à estática que vem se tornando hegemônico no audiovisual brasileiro contemporâneo, “A Matéria Noturna” usa bem o senso de urgência em múltiplas forma de representação.

No meio dessa letargia que parecia consumir Jaiana, o sopro de Iansã em Aissa – e dali para a frente, tudo é urgente, menos aquilo que os outros querem que seja. E que saudade do entorpecimento que nos tira a alma do corpo aos poucos na tarde que vira noite com o copo americano que só esvazia junto com o boteco em que o samba embala o lado bom e menos previsível da nossa existência.

Assista à conversa entre Leonardo Bomfim, Bernard Lessa e Welket Bungué sobre “A Matéria Noturna”:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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