Sinopse: Renata vive isolada no interior com sua filha adolescente e seu marido, compreendendo o medo como um sentimento comum. A chegada de um desconhecido desperta nela o desejo por tudo o que estava adormecido.
Direção: Ana Johann
Título Original: A Mesma Parte de um Homem (2021)
Gênero: Drama | Suspense
Duração: 1h 39min
País: Brasil
Partes que Não lhe Cabe
A Apostila de Cinema apostava desde o início na proposta de “A Mesma Parte de um Homem“. A cineasta Ana Johan foi convidada antecipadamente para ser uma de nossas entrevistadas, não apenas pela inquietude inicial que as poucas informações sobre a produção que nos chegavam gerava, mas porque as narrativas que vêm do Paraná tem nos surpreendido. Chegando na Mostra Aurora da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a realizadora traz seu primeiro longa-metragem ficcional e já se mostra inserida no melhor contexto que o audiovisual brasileiro pode nos proporcionar.
Quando falamos que pluralizar discursos se faz necessário, sempre reforçamos que essa é uma premissa a ser levada não só sobre quem faz o filme. As possibilidades de linguagens e formas que se encontram abarcadas no festival mineiro têm feito as produções selecionadas nas últimas edições percorrerem o mundo em mostras de todos os tipos. Aqui, por exemplo, estamos diante de uma história de narrativa tradicional, com o som enquanto grande elemento de gênero que nos aterroriza.
“A Mesma Parte de um Homem” revisita o horror enquanto realidade, na figura de mãe e filha (Renata, interpretada por Clarissa Kiste; e Luana, vivida por Laís Cristina) que precisam se reerguer após a morte do progenitor, Miguel. Um núcleo familiar desfalcado – e a palavra não está aqui acidentalmente. Como se peças definidas de um tabuleiro tornassem a vida um jogo previsível, as duas aceitam a chegada de Lui, para todos os efeitos um “tio distante”.
O prólogo do filme, em que a construção familiar original ainda existe, já nos apresenta uma narrativa que se aproxima de um conto de suspense. Artifícios como omitir informações, tornando-as soltas (“aquele negócio dos Cullman“, eles dizem em um jantar). A casa enquanto elemento, seus barulhos somados às percepções sobre o que há lá fora, intensificam a sensação do mal latente. O mato alto da plantação, os cortes no rosto de Luana que ainda não entendemos os motivos, há uma confluência de representações para trazer o temor a partir do mistério.
Johann não o faz de maneira didática – ou como um maneirismo. Há um formatação que se encontra com o objeto da história – a naturalização do medo. Um medo feminino, um compasso de espera pelo homem se mostrar verdadeiramente. Marido, tio distante ou completamente desconhecido, a dúvida é do “quando” e nunca do “se”. Generalizar olhar, infelizmente, é bem mais eficiente como defesa do que permitir exceções. Digo isso porque, enquanto homem, poderia abrir um parágrafo sacando o argumento “mas nem todo”, como se toda a historiografia audiovisual, de outros fazeres artísticos e das ciências sociais já não fossem um contraponto opressor suficiente.
A diretora (que roteirizou seu argumento ao lado de Alana Rodrigues) encontra esse contraponto na própria narrativa. Renata é uma mãe que segue reproduzindo leituras da sociedade machista. Mesmo com toda a inquietude que não há como disfarçar, ela insiste em dizer que a filha precisa saber lavar bem uma roupa para agradar o marido. Aqui a naturalização também é destaque. Ana Johann, então, enche de naturalismo seu longa-metragem, ampliando a provocação de que a realidade é feita para nos consumir e o que acreditamos ser o inferno, na verdade, é o apocalipse da vida real.
Sendo assim, ela conduz sua câmera que nos sufoca, muitas vezes bem próximas das duas personagens. Luana quase sempre tem o rosto coberto pelos cabelos, que ela não vê motivos para alinhar na forma que hipotéticas pessoas acreditam ser o certo. O ato inicial usa muito os objetos como condutores narrativos (as roupas, por exemplo, aparecem como elemento que ancora o diálogo já mencionado). A luz natural naquela casa é um pouco de “O Estranho que Nós Amamos” (2017) de Sofia Coppola, mas em uma trama que a ausência da figura masculina é sentida – mesmo que a presença seja um fardo.
Quando o Lui de Irandhir Santos chega, ele rapidamente ergue um comportamento padrão, de domínio. Mesmo assim, o naturalismo das interpretações segue enquanto gatilho inquietante. Há uma relação com o espectador que mistura a curiosidade com o desejo de dizer algo à Renata e Luana. Como os grandes filmes de terror o fazem.
Mantendo o suspense em alto voltagem, “A Mesma Parte de um Homem” pode desapontar aqueles que esperam metaforizações atravessadas. Poderão entender o vegetarianismo de uma e o espírito da caçadora que sente prazer em matar como possibilidades de trazer mais potência visual – ou um clímax (que não o de Lui, que enquanto homem se satisfaz com facilidade). Para nós, isso são apenas maneiras de querer uma adequação a uma velha lógica cinematográfica – que não existe mais. Ana Johann é mais uma que pinça elementos daquele empoeirado laboratório e mostra que os mesmos tubos de ensaio podem gerar novas narrativas, que nos provocam para sair de cena sem que dê tempo do público querer partes que não lhe cabem, como soluções fantásticas para o velho medo do real.
Assista à entrevista com a diretora Ana Johann:
Clique aqui e acesse os filmes da Mostra Tiradentes (até 30.01)