A Metamorfose dos Pássaros

Pôster A Metamorfose dos Pássaros Crítica

Sinopse: No longa de estreia da portuguesa Catarina Vasconcelos, os mistérios habitam os detalhes. A passagem do tempo é sentida nas imagens da memória, presentificadas nos corpos e paisagens rigorosamente encenados para a câmera. Neste filme-ensaio afetivo, a escrita de si feminina, consciente de seu próprio caráter fabular, desdobra-se nas brechas de um caleidoscópio familiar: entre pai e filha, avó e neta, com a ausência espaçosa da palavra mãe. À narração over, também partilhada poeticamente, cabe o gesto de alinhavar instantes perdidos, resgatar a História de um país que reluta em mudar, forjar novos laços e genealogias por meio (e por causa) do cinema.
Direção: Catarina Vasconcelos
Título Original: A Metamorfose dos Pássaros (2020)
Gênero: Documentário Experimental
Duração: 1h 41min
País: Portugal

A Metamorfose dos Pássaros Crítica Filme Olhar de Cinema Imagem

Entre Árvores e Pássaros

Na minha infância observava com curiosidade os olhos cinzas de meu avô. Olhos cinzas como, agora, estão os de minha mãe. Sempre achei curioso, mas passei a observar (ou a projetar) que com a idade, todos perdemos muito a cor dos olhos. Talvez, gasta pelo tanto que já vimos ou já sofremos.

Não me furtarei aqui a falar sobre minha experiência porque acredito que todo filme que estabelece uma relação forte com o espectador passa por aí, pelo que ele já vivenciou e a relação que o tema o traz. Tal qual a própria diretora Catarina Vasconcelos faz em “A Metamorfose dos Pássaros“, esse será um pequeno texto também um pouco sobre minha relação com minha mãe e a dela com a mãe dela e a da mãe dela com a mãe dela.

Pouco sei sobre as relações afetivas entre mães e filhxs de outras gerações familiares. Quando nasci minha avó já havia tirado a própria vida de maneira a marcar as asas de todos nós. As árvores e os pássaros, lembram?

Nós, os pássaros, ficamos todos um pouco órfãos das folhas vastas de sua cabeleira negra. Essa é a imagem que tenho de minha avó. Uma senhora com o rosto sisudo e vastos cabelos muito negros. Minha mãe repetidamente, agora com seus 86 anos, diz que sou muito parecida com ela. Sendo eu, negra e adotada.

Todos que puderam ter uma relação com sua mãe, ainda que em uma brevidade, entendem a poesia nada sutil de “A Metamorfose do Pássaros“. O filme em si é como uma série de poesias narradas através das vozes dos protagonistas, Jacinto (que, em verdade, se chama Henrique) e Catarina. Há também outros momentos fortes como a música que Teresa canta e, em minha percepção, é um dos mais belos momentos do filme – possivelmente porque minha relação com a poesia seja bastante musical. Agora, por exemplo, escuto a banda A Naifa (banda portuguesa) e, por coincidência, a música “Um Feitio de Rainha” foi a primeira tocar – a mãe, a pátria e o mar estão presentes.

Não sugiro que todos tenham a mesma leitura do filme que eu porque, ainda que suas poesias imagéticas sejam fortes e as palavras se tornem cicatrizes, cada relação com a mãe é única. Tão únicas que, por vezes, bem parecidas. Perder uma mãe, imagino eu, que somente ainda a vejo lentamente partir entre ausências e presenças, não deve ser mesmo esquecível.

A Metamorfose dos Pássaros” é sobre o inesquecível, o indizível, o inexplicável amor que é vivido somente com esse ser que chamamos de mãe. É uma relação mesmo semelhante à imensidão do mar, que retorna algumas vezes no filme.

As provas do tempo que aparecem no enrugado rosto da primeira cena são trazidas sem que se tenha necessidade de se estabelecer entre elas uma relação temporal e causal. Afinal, o que trazemos do passado? Em “Matéria e Memória” o filósofo Herin Bergson diz: “todo movimento, enquanto passagem de um repouso a um repouso, é absolutamente indizível“. Diz ainda, “a divisão é obra da imaginação“. Que divisões estabelecemos para guardar em nossa pele as relações maternais que temos pela vida? Entre pássaros e árvores, todos nós já estivemos por entre os galhos ou fomos as penas de uma asa.

Torna-se impossível ou, ao menos desgostoso, não trazer novamente meu poeta favorito para dialogar com o filme de Catarina. As Árvores me começam. Frase/Estrofe de Manoel de Barros.

Se as mães forem árvores e os filhos pássaros, ambos -Catarina e Manoel – estão certos.

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Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia - Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas.

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