Sinopse: Aos cinquenta anos, alcoólatra e desempregado, a tábua de equilíbrio de Raul é sua paixão por Lígia, que nos últimos anos foi sua parceira de uma vida sem regras. Mas a relação entre os dois não é mais a mesma. Durante uma noite conturbada, Raul cruza com Cássia, uma jovem desgarrada e cheia de vida que vai despertar nele um lado antes desconhecido.
Direção: Eduardo Morotó
Título Original: A Morte Habita à Noite (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 34min
País: Brasil
Alenta Chegada
“A Morte Habita à Noite“, selecionado para abrir o 30º Cine Ceará, faz uma relação de partidas que se tornam chegadas e, por que não?, mortes que se tornam renascimentos. O primeiro longa-metragem do premiado cineasta pernambucano Eduardo Morotó, como o mesmo informa na abertura da sessão virtual da plataforma Canais Globo, é inspirado na produção literária de Charles Bukowski. Por consequência, inspirado nas próprias vivências do escritor, que não escondia o caráter autobiográfico de seus escritos. Foi selecionado anteriormente para as edições dos festivais de Roterdã e de Viña del Mar.
Raul (Roney Vilela) é o Henry Chinaski do diretor. O personagem – protagonista de quase todas as histórias do autor alemão – é um homem de meia idade, descrente de qualquer elemento sobrenatural. Mais do que mundano, os protagonistas (tanto da obra audiovisual quanto literária) são submundanos. Escritores frustrados, que vivem com empregos que o pagam o necessário para sobrevivência, tendo a cidade como campo aberto para as noites boêmias. Morotó consegue transpor muito bem essa atmosfera marginal, incluindo as representações canônicas do cinema nacional, com aquele que quer homenagear.
Transforma o espectador em um ser errante, tal qual Raul. Opta por uma narrativa episódica e – mesmo com conexões que nos permite concluir que a linha temporal é bem curta, as mudanças sutis de comportamentos e dos traços de personalidades do protagonista faz as marcações serem ainda mais flagrantes. A montagem de “A Morte Habita à Noite“, por sinal, quer demarcar o que podemos chamar de três contos (ou atos, já que a linguagem literária e cênica perpassam todo o filme). Cada uma delas se encerra com longos segundos de tela preta.
Mais do que aplicar uma estética suja, faz uso de áreas periféricas de comércios populares e inferninhos, além de grande e permanente tensão sexual (bem trabalhada, incluindo a não-concretização). Estamos diante de um arco que não se sustentaria caso agisse apenas referencialmente. O texto gestado por Morotó tem sua dose de originalidade, se adapta à linguagem brasileira, mesmo que a marginalidade de Bukowski seja universalista. O resultado final é uma narrativa bem menos virtuosista que o confuso “Aos Pedaços“, que rendeu a Ruy Guerra o kikito de melhor diretor no Festival de Gramado este ano.
No primeiro ato/conto, Raul divide espaço com Ligia (Mariana Nunes), um relacionamento mais próximo do tradicional. O grande destaque, contudo, é o desenvolvimento de “A Morte Habita à Noite”, em que Cássia (Endi Vasconcelos) ganha a tela. Ali o protagonista encontra uma provocação que o faz, talvez, ser “melhor”. Não há lógica nos jogos noturnos e talvez por isso os versos de “Sandra”, música de Gilberto Gil, esconda um verdadeiro significado que ele compreenderia tarde demais – fica ao público a dúvida sobre o quanto ela se expôs ao “estranho”, outro conceito que ganhas novas formas em espaços como os dominados por discípulos de Bukowski.
O clima de chegada da morte, tão abrupta na cena inicial em que um homem se atira da janela do Edifício Maré, parecia se materializar em Inês (Rita Carelli). É curioso que Eduardo Morotó gosta de marcar, na segunda e na terceira parte, falas que nos remetam a sopros de vida que lhe antecederam. Ali percebemos o quanto estamos inseridos em uma comunidade, mesmo quando optamos por nos marginalizar. É nítido como Raul padece de uma vida que insiste em criar novos pontos de virada e ele demonstra absorver tudo o que lhe chega. Todavia, é provável que lhe reste meramente a aceitação.
“A Morte Habita à Noite” é uma excelente produção para nossos tempos decadentes, onde a moral é constantemente reconstruída e a morte como fato inescapável deveria nos tornar mais fortes e não mesquinhos.
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