“Acqua Movie” segue em cartaz. Assista uma entrevista exclusiva com Lírio Ferreira.
Assista à entrevista com Lírio Ferreira:
Se preferir, ouça a versão em podcast:
Sinopse: Numa fria manhã na cidade de São Paulo, Cícero, um menino de 12 anos, depara-se com seu pai morto no banheiro de casa, vitimado por um infarto fulminante. Sua mãe está na floresta amazônica realizando um documentário sobre causas indígenas. Esse é o ponto de partida deste filme de estrada onde mãe e filho tentam, em meio ao sol escaldante do semiárido nordestino, atravessado por canais de transposição das águas do Rio São Francisco, reinventar a narrativa do afeto.
Direção: Lírio Ferreira
Título Original: Acqua Movie (2019)
Duração: 1h 45min
Gênero: Drama
País: Brasil
Legados Renegados
Não é todo dia que isso acontece. Aliás, em quase nenhum, já que vivo uma variação de falta de forças com euforia produtiva em dias alternados há alguns meses. Mas há dias em que o medo bate. Não aquele que acompanha a ansiedade, típico de uma crise de pânico. Falo de um medo do que dizemos – principalmente se trabalhamos com a verdade, o respeito e promoção de igualdade. “Acqua Movie“, do cineasta Lírio Ferreira, foi exibido em curta janela de três dias na 9ª Mostra Ecofalante de Cinema e esperamos que seja esse o texto de abertura de uma ampla cobertura da Apostila de Cinema. Ele toca em assuntos da sociedade brasileira que nos motiva a produzir resenhas críticas diariamente desde a criação da plataforma. Porém, sob o verniz da ficcionalidade, escancarada em um elenco de rostos famosos, a sensação de que estamos em um buraco sem fundo parece aumentar.
A narrativa gira em torno do menino Cícero (Antonio Haddad), que possui uma relação próxima com o pai, Jonas (Guilherme Weber). A mãe trabalha na produção de filmes, geralmente de temática indígena e está sempre ausente. No começo da trama são três meses sem ver o filho. Há muito superamos esse juízo de valor do adulto que vai atrás de seus sonhos ou apenas exerce um ofício que demanda uma rotina doméstica nula. Fosse homem, a personagem Duda (Alessandra Negrini) seria vista em outros tempos como corajosa. No audiovisual do século XXI, ela também é. Uma mulher de princípios e causas – e que ama seu filho.
Quando o marido falece, ela precisa abandonar as filmagens na Amazônia e lhe dar amparo. A primeira coisa que ouvimos no diálogo entre os dois é o garoto falando que odeia a mãe. Contrasta com a vida de harmonia anteriormente mostrada, quando era só pai e filho. Deste ponto em diante, “Acqua Movie” se certifica de explorar a lentidão do luto. Uma marcha fúnebre visual, um demorado processo de aceitação. Cícero, então, revela que seu pai gostaria que suas cinzas fossem levadas a Rocha, sua cidade-natal. Na verdade, Nova Rocha, visto que a transposição do Rio São Francisco transformou o município original em uma nova Atlântida e ele foi refundado.
O Cícero original, aquele que seguimos replicando seu nome vinte séculos depois, ficou conhecido por seus escritos humanistas, revisitados no Iluminismo. Já o Cícero criado no roteiro de Lírio Ferreira (ao lado de outros dois grandes nomes do Cinema Brasileiro: Marcelo Gomes e Paulo Caldas) é um mero ouvinte. Um jovem que ainda precisa discernir os lados tal qual estão postos na sociedade atual. A forma como esta jornada é contada, após o período de luto já citado, é fiel à maneira da Era da Retomada, aquele onde o cinema recifense emergiu no cenário nacional. Uma construção que alia o road movie a um drama familiar bem costurado, se servindo de poucos personagens, porém todos bem caracterizados. O estranhamento da relação entre mãe e filho (que precisam se unir por terem apenas um ao outro) ganha novos contornos quando a história chega em Nova Rocha.
Ali o espectador começa a se perguntar porque Jonas parecia diferente das suas origens. Um rompimento compreensível em tempos de polarização doutrinária. Polarização na prática, porque na teoria há ainda uma boa caminhada para as pontas extremadas da convulsão social. Feita a ressalva, passamos a conhecer a elite local, lambuzada nas oportunidades que a forte desigualdade permite. Uma região em que a água sempre foi um bem precioso e parece cada vez mais se concentrar nas mãos de alguns. O coronelismo não acabou no Brasil e estamos em um processo de resgate dessa forma de organização das comunidades.
Cícero é uma peça dessa engrenagem e não entende o quanto sua relação com o pai – que nem está mais junto dele – afeta sua percepção. “Acqua Movie” confronta a família de Jonas e Duda sem que fique muita margem de dúvida acerca do antagonismo. Parte do público escolhe o lado da cineasta que fomenta o debate sobre os povos originários com seu trabalho. Mas há quem se identifique com o homem que presenteia seu sobrinho, uma criança, com um canivete (suíço) marcado com uma bandeira (brasileira). O tio Prefeito que lamenta que nessa terra “ainda tem índio”.
Os caminhos traçados por Lírio Ferreira se pautam pelo equilíbrio. “Acqua Movie” é uma obra que alia uma construção narrativa sólida, com um ritmo agradável a quem não é afeto a experimentalismos. Deixa de lado parte do rescaldo desbundante da Retomada e se aproxima da carga política da produção brasileira atual. Não se preocupa em tornar muito complexas as relações e os personagens, auxiliando a quem tinha dúvida de suas mensagens para, minimamente, chegar às suas conclusões. Mesmo muito agradável, ao final da sessão, senti medo. Medo de viver em um país onde falar de questões sociais, humanitárias – sem qualquer inclinação a uma corrente política – seja manifestamente capaz de atrair inimizades ou até mesmo perseguidores.
Faz pensar até quando conseguimos trazer debates sobre a sociedade brasileira a partir de filmes como este sem que isso gere prejuízos a nós e nossas famílias. Por isso é tão significativo que veteranos do Cinema Brasileiro também estejam dispostos a contribuir para que discursos tão importantes não sejam apagados. Mesmo assim, hoje foi dia de medo.
Veja o Trailer de “Acqua Movie”: