Al-Shafaq: Quando o Céu se Divide

Al-Shafaq Quando o Céu se Divide Crítica Filme Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020 Sinopse: A família Kara é da Turquia, mas vive há muitos anos na Suíça. Abdullah, o pai, comanda os três filhos com pulso firme enquanto Emine, a mãe, tenta equilibrar a rigidez do marido com seu carinho pelas crianças. Os dois garotos mais velhos conseguem se adaptar facilmente às duas culturas, tanto a turca quanto a ocidental. Mas Burak, o caçula, não se sente pertencendo a nenhum desses dois mundos. Por isso, ele decide abdicar da cultura do Ocidente para se dedicar ao Alcorão. A princípio, os pais sentem orgulho, e só percebem o extremismo dos ideais de Burak tarde demais, quando o jovem foge para lutar na guerra santa. Abdullah, então, parte até a fronteira entre a Turquia e a Síria para procurar o filho.
Direção: Esen Isik
Título Original: Al-Shafaq – Wenn der Himmel sich spaltet  | Al-Shafaq – When Heaven Divies (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 38min
País: Suíça

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Pertence e Não Pertence

Apesar de ter recebido educação formal em cinema durante a década de 1990, a turca Esen Isik lança, aos 51 anos, apenas seu segundo longa-metragem, “Al-Shafaq – Quando o Céu se Divide” – que faz parte da Competição Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Não sabemos quais os motivos de foro íntimo e a trajetória de vida da cineasta, mas podemos projetar que fatores de gênero, sem dúvida, foram obstáculos para a diretora não tenha tanto projetos concluídos.

Assim como Lulu Wang em “A Despedida” (2019), aqui ela parte de suas experiências pessoais. Radicada em Zurique o longa-metragem conta a história da família Tara, de muçulmanos turcos residentes na Suíça, tendo como conflito os problemas de identidade cultural de Burak (Ismail Can Metin), um dos filhos do casal Abdullah (Kida Khodr Ramadan) e Emine (Beren Tuna).

Isik faz uma teia complexa de relações em sua obra, realizando de maneira envolvente essa proposta. Coloca o espectador em dois pontos espaciais (Zurique e Afrîn, cidade síria no distrito de Alepo) e três intervalos temporais, que se comunicam através de Abdullah e Malik (Ahmed Kour Abdo), uma criança que ele conhece em um hospital em meio à guerra, onde espera notícias do irmão que está internado.

No início nos vemos diante de uma narrativa clássica de flashback. O pai encontra Burak no leito de morte, ferido por um conflito. Aos poucos vemos que esse jovem renegava a religião praticada por sua família, ao mesmo tempo que não se sentia confortável com a forma de vida do Ocidente. O fundamental na construção do personagem interpretado por Ismail é o questionamento clássico – e muito pertinente, por sinal – de quem não consegue se prender a uma doutrina de fé. O garoto não compreende como é possível que Alá (ou qualquer outro deus) opte pelo sofrimento daqueles que os ama. Nem o sentido dele vislumbar formas de punição, geralmente com o emprego de muita dor a inocentes.

O contraponto desse entendimento de Burak é Abdullah que, a despeito da integração com a Suíça – onde mora há muitos anos – não quer que seus filhos deixem de seguir os preceitos do Alcorão. Na outra ponta de “Al-Shafaq: Quando o Céu se Divide” temos Malik e seu irmão, que transitam pelo território sírio em meio ao sangrento conflito e sem que a religiosidade afete sua rotina. Ao trazer mais um olhar ao filme, a cineasta consegue ampliar nossa percepção sobre as diferenças identitárias e de pertencimento a uma cultura, a partir de mais de um fato. De quebra, registra as mudanças de pensamento baseado em uma doutrina e como a consciência sobre as consequências de seus atos não são valoradas quando o individuo considera estar em acordo com sua ideologia de fé.

A maneira como ela faz isso foge da obviedade de uma narrativa em montagem paralela dinâmica, com a intenção de sempre manter o público conectado aos conflitos (geralmente dois, aqui três). Ela deixa o ambiente permanecer como dominante o tempo que for necessário, evitando reiterações dentro do enredo. Ao apontar na primeira sequência que Burak se tornou um combatente na Síria, ela cria a expectativa de desnudar o caminho perseguido pelo personagem, mas não torna essa a única abordagem do longa-metragem.

Ao reservar um importante tempo de tela à relação entre Abdullah e Malik, unidos pelo sofrimento causado pela morte de entes queridos, a diretora entra em um campo que supera o pertencimento de uma cultura, atingindo a inviabilidade de exercê-la plenamente no território onde vive. Aquela criança representando um refugiado em potencial está lado a lado de um homem que prosperou em uma terra distante. Situação que provoca tanto interesse dentro da história costurada por Esen Isik que ela não se escusa de deixar de lado a origem do fato antes vendido como principal: a transformação de Burak.

Durante uma busca por respostas, podemos sempre encontrar novas perguntas – e relações. A trajetória de Abdullah acaba se tornando o mote de uma obra que, ao invés de esticar representações de um “passado” cuida desse pertencimento cultural com os elementos do “presente” (assim tratados por serem as linhas temporais da obra). Por fim, quando entende que a jornada daquele senhor e do menino, de tão entrelaçadas, já podem ser consideras concluídas, “Al-Shafaq: Quando o Céu se Divide” retoma os caminhos perseguidos por Burak, quase que em ato próprio. Uma forma interessante de subverter – mesmo que sutilmente – a relação entre consequência x causa, sem que para isso se valesse de uma estrutura engessada de uma montagem seriada.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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