Amarelo Manga

Amarelo Manga

Sinopse: Em “Amarelo Manga” somos apresentados a cinco moradores do subúrbio do Recife: Lígia (Leona Cavalli), uma garçonete cansada da rotina de trabalho que lhe cansa e a faz sentir violentada todos os dias; Kika (Dira Paes) uma fervorosa evangélica, que não imagina que seu marido Wellington (Chico Diaz) está insatisfeito com a vida conjugal; Dunga (Matheus Nachtergale), responsável pelo Hotel Texas, que sabe muito do que alguns clientes tentam esconder; e Isaac (Jonas Bloch), um dos frequentadores do hotel, que aguarda contatos de Rabecão, funcionário do IML que lhe permite atirar em cadáveres para seu deleite.
Direção: Cláudio Assis
Título Original: Amarelo Manga (2002)
Gênero: Drama
Duração: 1h 43min
País: Brasil

Amarelo Manga Imagem

Redenções Nunca Vistas

Inciar a jornada de revisitações dos longas-metragens de Cláudio Assis (já com seu nome marcado na história do Cinema Brasileiro) é lembrar de um Brasil imbuído por um espírito de redenção que nunca chegou. Isso faz com que “Amarelo Manga“, lançado em 2002, marque não apenas a trajetória vitoriosa em produções maiores do cineasta (o filme foi o grande vencedor do Festival de Brasília de 2002 e do Cine Ceará em 2003, chegando ao Festival de Berlim).

No melhor que um espelhamento narrativo pode fazer, o monólogo de Lígia (Leona Cavalli) se constitui a sequência de abertura e, novamente, uma espécie de início de epílogo. O texto é de Hilton Lacerda, que repetiria as parcerias com Assis e, quando foi para a cadeira de direção, entregou o clássico instantâneo “Tatuagem” (2013). A proposta soa quase como banal se pensarmos no volume de obras que criam uma espécie de fragmento de rotina com o claro intuito de nos mostrar que, na prática, nada muda a despeito de acontecimentos que nos arrebatam aqui e ali.

Nesse monólogo, Lígia lamenta que seu time de futebol – o Santa Cruz – esteja em profunda crise. Talvez essa dificuldade que o clube pernambucano ainda passe seja o que menos mudou nas quase duas décadas que separam o lançamento de “Amarelo Manga” e essa revisitação. A personagem de Cavalli reclama da solidão e manda tudo às favas em um xingamento libertador. Essa abordagem “azar no jogo, azar no amor” soa em 2020 como um paralelismo inocente, visto que as experiências e manifestações de Lígia se destacam na obra. Uma mulher que convive diariamente com o assédio e que não aceita a normalização dessa conduta. E mesmo assim ela continua sofrendo tal abuso. Todavia, ao não trazer esse peso na sua apresentação, observa-se que a conduta dela mesma (de se revoltar com isso em vão), de certo modo, foi normalizada – o que chancela o machismo como algo inerente.

Kika (Dira Paes) é a outra personagem feminina e talvez nos basta os trabalhos de Leona e Dira para perpassar o que chama a atenção no filme – sem desmerecer os excepcionais trabalhos de Chico Diaz, Matheus Nachtergale e Jonas Bloch. Kika é a “conservadora mulher moderna”, um estereótipo que com o avanço do século XXI ganhou cada vez mais espaço na sociedade brasileira. Praticante do evangelho em uma das milhares de igrejas neopentecostais, ela passa por um processo de desconstrução em “Amarelo Manga”.

É algo diferente do deboche, do escárnio, da fanfarra que as novelas da Rede Globo de Televisão fizeram por muitos anos, motivada pela concorrência do setor liderada pelo líder da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) – até parar por, obviamente, ofender uma parcela maior das famílias brasileiras. A desconstrução aqui é, sim, carregada da irreverência brasileira, porém mais focada no pensamento freudiano. A personagem de Dira Paes expressa sua perversão reprimida com o seu pudor excessivo. Enquanto Lígia consegue sua redenção na verborragia, Kika precisa de um baque que lhe faça ser reativa.

Os personagens masculinos transitam por “Amarelo Manga” como agentes provedores do caos. Apesar de bom tempo de tela, o Dunga de Matheus Nachtergale merecia ser mais descamado. Enquanto que as motivações de Isaac (Jonas Bloch) são bem claras e a narrativa se valha dele para mover as peças no tabuleiro, Dunga flana com menos objetividade. Todavia, Wellington (Chico Diaz) tem a melhor cena do filme. Cláudio Assis exagera no tom ao retratar toda a macheza desse homem que trabalha em frigoríficos e abatedouros, inserindo cenas de mortes e esquartejamento de animais que embrulham o estômago. Nas horas vagas, sexo com amantes enquanto a esposa ora na igreja.

Pois é justamente dele o clímax da obra. Isso ocorre quando ele desce do patamar de macho-alfa e o ator Chico Diaz trabalha de forma magnífica a masculinidade ferida – ao mesmo tempo em que Dira Paes consegue a libertação sexual de Kika, baseada na reatividade já mencionada. O cineasta, em conjunto com a montagem de Paulo Sacramento, faz uma singela vinculação ao povo trabalhador recifense, em um diálogo visual ainda moderno em 2002, que hoje é absorvido pelo espectador com mais naturalidade, posto que acostumado com essas mensagens dentro da edição.

O que faz de “Amarelo Manga” mais apaixonante é o equilíbrio entre a sobriedade das imagens, uma faceta ultrarrealista que cada vez mais as produções nacionais se valem, com a empolgação e o frescor de um realizador que quer nos mostrar o máximo que consegue. Uma câmera muito explorada, que se movimenta e passeia mesmo que a ação perca espaço por alguns segundos, para que possamos olhar um elemento que poderia nos fugir. Talvez não haja influência no conjunto, porém uma exploração que ali está para que forneça certeza de que temos elementos suficientes para fazer nossos juízos sobre o que se passa. É uma direção compartilhada, uma troca.

Ainda há muita influência do cinema brasileiro clássico, principalmente com uma segunda metade que usa elementos marginais como a narração poética se sobrepondo a atividades urbanas. Podemos mencionar também as trilhas incidentais que fragmentam a obra, com várias sequências que não se unem por essa intervenção que nos mantém em suspenso. O forte apelo sexual e a já mencionada verborragia transitam por toda a obra – e seriam atributos visuais e narrativos que se tornariam inerentes à filmografia de Assis.

Por fim, imaginamos que as intenções do cineasta em seu primeiro longa-metragem, apesar de nobres, não tenham sido alcançadas. Ao separar um bom tempo com as idas-e-vindas do falecimento de um senhor, “Amarelo Manga” parece querer criar uma metáfora sobre a morte de uma geração. Uma morte que deve existir para que uma nova geração tome as rédeas. Esta se ergueria com símbolos como a “crente” Kika e o “gay” Dunga, como se as pessoas pudessem se resumir a uma palavra. Mas o espírito da obra mostra um Assis que entende ser possível a coexistência ou, ao menos, a desconstrução desses símbolos. Infelizmente, no Brasil de 2020 soa utópico acreditar na inexistência de embate, posto que somos uma sociedade em rota de colisão. Mesmo assim, é romântico ver que o pernambucano entende ser possível, na dureza da rotina, encontrar algumas redenções, como o gozo de Kika. Pois parece que, na prática, serão redenções nunca vistas.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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