Sinopse: Com uma motosserra, George Washington se une ao beberrão Sam Adams para derrotar os ingleses numa grande zoeira com a Revolução Americana.
Direção: Matt Thompson
Título Original: America: The Motion Picture (2021)
Gênero: Animação | Comédia
Duração: 1h 38min
País: EUA
Chá Cota
Quem disse que nesse 4 de Julho a Apostila de Cinema não cedeu às comemorações imperialistas da liberdade a partir da independência dos Estados Unidos da América? Debochando bem menos do que a si mesmo, prestigiamos uma das estreias da semana da plataforma de streaming Netflix, a animação adulta “America: The Motion Picture“, a primeira do serviço mais popular do mundo. Matt Thompson (vencedor de um Emmy pela série de animação “Archer“), em roteiro de Dave Callaham (ironicamente alvo de nossa ira há algumas semanas, na crítica de “Mortal Kombat“), revistam a história que transformou os rumos do país em meados do século XVIII em um revisionismo crítico provocador aos patriotas conservadores (daqui e de lá) que acreditam que a História é algo a ser mitificado, erguendo ídolos de inabalável credibilidade, em um heroísmo acima de qualquer suspeita.
O filme não apenas usa expediente parecido com outras obras, como a minissérie brasileira de 2002 “O Quinto dos Infernos” (que teve no livro de José Roberto Torero, “O Chalaça“, um registro importante na ideia de desbundar o passado). Ele adiciona referências posteriores da cultura da nação mais poderosa do mundo, em um carrossel que amplifica o humor por trás da paródia historicamente contextualizada. Tendo como um dos produtores o astro Channing Tatum e angariando para seu elenco vozes como a de Simon Pegg e Judy Greer, o longa-metragem encontra amparo no mainstream norte-americano, como se viu em outras épocas, tal qual a passagem de “Tem America: Detonando o Mundo” (2004) pelos cinemas.
Por sinal, esta animação criada por Trey Parker e Matt Stone, mesmos responsáveis por “South Park” parece uma das inspirações. Estamos de volta em um momento chave dos EUA: um grupo insurgente liberal não quer mais arcar com os altos impostos para manter os hábitos de vida dos ingleses, como o mercado de chá. Na Europa, a Revolução Francesa dava pistas do caminho a ser seguido e Abraham Lincoln (deslocado para o passado pré-revolucionário e pela quarta vez em uma animação com a voz de Will Forte) inaugura a crise que levaria ao processo de Independência, consolidado por George Washington (pela voz do próprio Tatum). Dialoga com o musical “Hamilton” (2020), disponível no Disney+ ao trazer parte dessa ideologia burguesa com contrapontos contemporâneos, iniciando nesta base a ideia de olhar para além dos atos heroicos dos antigos livros de História.
Ao utilizar a animação e a comédia satírica como forma, “America: The Motion Picture” consegue adicionar bem mais elementos do que a criação de Linn-Manuel Miranda. A licença poética permite transformar o assassinato de Lincoln em um ataque de lobisomem, exagerando nas tintas do antagonismo britânico. Já Thomas Edison (e não Jefferson) e sua tecnologia assombrosa para (a sua) época, atravessa o tempo como uma imigrante chinesa acusada de bruxaria, pela voz de Olivia Munn. Os atravessamentos que pluralizam o grupo que lutará pela liberdade do país vai encontrando as verdadeiras mãos que construíram a América (para citar a canção “The Hands That Built America“, do U2, presente em “Gangues de Nova Iorque“, de 2002, onde Martin Scorsese também se dispunha a tratar das origens daquele território).
Caracterizando George Washington como um estadunidense moderno (mesmo que não trumpista ou republicano por convicção, mas ainda assim fruto de seu meio), nos deparamos com um protagonista de inteligência limitada, que não consegue compreender seu privilégio branco nem quando as pessoas próximas verbalizam. Ele reúne um grupo carregado de representatividade por acidente e não por mérito.
Gerônimo (Raoul Max Trujillo), líder indígena apache do século XIX; o ferreiro inspirado na lenda de John Henry e chamado apenas de Blacksmith (Killer Mike) e até a figura mitológica e (passadas algumas décadas) ancestral do Robocop, um dos aspectos do sonho americano materializado. Já a realeza britânica é trocada do George III (monarca do período) por James I (Simon Pegg), que governo um século e meio antes, apontando como fundamental para a exploração colonial da América Inglesa ao inaugurar o sistema de plantation no território.
Merece destaque o ato final, em uma clássica batalha campal ao som de “Fight for the Right” dos Beastie Boys, em uma estética que lembra a mais jovem narrativa imperialista incrustada em nossa cultura, “Os Vingadores: Ultimato” (2019). Talvez o mergulho na narrativa, nos primeiros minutos, demande uma base de conhecimento dos aspectos da historiografia dos Estados Unidos, ainda mais em uma proposital bagunça cronológica e temática. Mas, depois disso, a diversão é sequencial, em um ritmo de gags que demonstram a criatividade de Dave Callaham, após tantos textos sofríveis na carreira.
Do amor pelas armas (compradas em mercados) ao histórico de guerras estrangeiras representado pelo Bar Vietnã, passando pelos falsos preceitos bíblicos citados por Washington, “America: The Motion Picture” embute referências culturais atuais e de várias épocas em uma missão, cumprida com sucesso, de mapear os hábitos do cidadão-médio norte-americano e bagunçar a sua percepção acerca da gloriosa história de seu país – mesmo que a jornada liberal contra os impostos soe uma mensagem bem menos debochada ao final.
Veja o Trailer: