Sinopse: Ammonite se passa em 1840 e é a história da caçadora de fósseis Mary Anning (Kate Winslet), que trabalha sozinha para uma companhia. Com seus dias de fama ficados para trás, ela agora procura por fósseis comuns para vender para turistas, com intuito de sustentar a si mesma e a sua mãe doente. Quando um homem rico lhe oferece um trabalho, Mary passa a criar laços com sua esposa, obrigando as duas mulheres a determinar a verdadeira natureza de seu relacionamento.
Direção: Francis Lee
Título Original: Ammonite (2020)
Gênero: Romance Biográfico
Duração: 2h
País: Reino Unido | Austrália | EUA
Amor Fismo
“Ammonite” traz Francis Lee de volta à cadeira de diretor, após a bem-sucedida estreia em longas-metragens “O Reino de Deus” (2017). Indicado ao BAFTA do ano seguinte e vencedor de prêmios em mostra paralela da Berlinale, ele apresentaria seu novo trabalho em outra importante data do cinema europeu e mundial no Festival de Cannes 2020, cancelado sem a oportunidade de ser virtual, mesmo com uma promissora lista de obras selecionadas devido à pandemia do novo coronavírus.
O filme traz um recorte da história de Mary Anning (Kate Winslet), uma paleontóloga fundamental para o conhecimento de espécies extintas no período jurássico. Em 1840, aos 41 anos, ela conhece Roderick Murchison (James McArdle) e sua companheira Charlotte (Saoirse Ronan). Os dois passam uma temporada na região da costa britânica com o objetivo de melhorar a saúde da mulher. O ricaço, então, propõe que Mary seja uma espécie de guia aventureira de Charlotte. Elas passariam tempos juntas, dentro do processo de pesquisa da coletora de fósseis – já famosa nos círculos londrinos por ter parte de seu acervo nos grandes museus de história natural da capital.
Não há como criar relações com uma das grandes produções de 2019, “Retrato de uma Jovem em Chamas“. Não apenas pela ambientação e pelos espaços naturais explorados que se assemelham. Há uma similaridade de ritmo, do encontro de duas jornadas de redescoberta e do uso do silêncio em boa parte dos momentos em que a narrativa avança. O texto do próprio Lee verbaliza questões de rotina e diálogos protocolares, permitindo que a imagem leve o espectador adiante. Se não há o mesmo arrebatamento visual do longa-metragem dirigido por Céline Sciamma, o estudo de personagem aqui é um pouco mais complexo – com todas as questões positivas e negativas que carregam essa comparação.
O filme faz menção a um tipo de molusco que desapareceu junto com os dinossauros do período cretáceo. Uma característica dele (e que seria identificada em outros animais posteriormente) é a ocorrência do chamado dimorfismo sexual. Ou seja, macho e fêmea possuem diferentes características físicas que extrapolam os órgãos sexuais. Uma criação de referencial de gênero que, quando chega nas relações humanas, encontra leituras completamente atravessadas sobre tais aspectos. Quando ultrapassam a Biologia e se vinculam a interações sociais, ao amor e ao afeto, são ventiladas de maneira a desautorizar indivíduos e nos prender a conceitos.
Em “Ammonite” o amor é forjado de uma forma natural, como em um processo. Temos desde cedo a informação de que Mary é um grande expoente de sua área, porém não consegue gozar da fama. Parte de seu trabalho depende do mergulho e da transição por outros espaços. Kate Winslet, então, constrói uma protagonista ciente de seu poder, mas com dificuldade de se aceitar – e não estamos entrando no despertar afetivo, ainda é sobre sua carreira. Já Charlotte tenta sair de um estágio de convalescença e não deixaria de vincular essa guinada em seu estado de espírito aos momentos passados com Mary. Saiorse Ronan, então, pensa sua personagem de maneira bem menos assertiva do que aqueles que lhe cercam – o marido e a futura amante.
Diante disso, temos no filme o desenvolvimento de uma relação baseada no entendimento. As duas se percebem, antes de mais nada – até se concluírem deslocadas. Mary cava novos objetos de estudo em um processo de criação que nunca se esgotará. Charlotte encara sua recuperação como uma nova vida. Antes do amor florescer (ou fossilizar), há uma cumplicidade alcançada nesse longo processo. Francis Lee estica essa sensação, em uma obra pouco dinâmica, que explora essas sensações, essa inquietude o máximo que pode. Ao ponto de esgotar seu objetivo mais rápido do que ele imagina ser possível.
Por óbvio que, em meados do século XIX, o despertar de uma paixão homoafetiva não se valeria de muito naturalismo. Há um desconhecimento de si, consequência de séculos de uma dogmática que vincula certos sentimentos ao pecado. Todavia, o que Lee não percebe é que suas caracterizações são tão potentes e sua dupla de protagonistas tão talentosa, que a manutenção de um estágio de suspensão exagerada pode exaurir parte do espectador. Quando o avanço é mais direto, Winslet e Ronan brilham ainda mais.
Isso acontece com a mudança das relações dentro da relação. Quando as personalidades expostas se sobrepõem e há uma bonita inversão de papéis. Charlotte, com muito mais a perder, entrega qual a atitude a ser tomada. Momento em que Mary, na principal cena do filme, se comporta com o poder que ela tem e não consegue exercer enquanto mulher bem-sucedida em seu ofício. Ela comanda as ações e parece gostar da submissão da parceira. Por outro lado, Charlotte carrega um ar de libertação diante daquelas manifestações. Aos poucos, Saoirse vai se impondo de forma a tornar Kate submissa quase no mesmo estágio ao qual se encontrava.
Essa beleza de mutação na dinâmica entre as duas é o grande destaque de “Ammonite“. A ideia de que somos parte do outro ao ponto de termos o poder de conduzi-los, de determinar seu destino, pode ser um destruidor ponto de virada em nossas vidas. Uma libertação tão intensa que acaba por nos prender. Um dimorfismo comportamental capaz de fazer com que não reconheçamos o amor que nos levou a atravessar mundos e fronteiras. É quando não dá mais para abdicar das palavras.
Veja o Trailer: