Sinopse: Eurico Cruz amanhece irritado. Sabe que algo está por acontecer. Um bilhete, assinado por um A. lhe anuncia sua morte. Quem o ameaça? Embaralham-se os espaços, as personagens, suas paixões extremas, seus ódios, amores e suspeitas.
Direção: Ruy Guerra
Título Original: Aos Pedaços (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 32 min
País: Brasil
Angústia Mortal
Em “Aos Pedaços” o público brasileiro teve a oportunidade, nesse 2020 revolucionário na forma de configurações de mostras audiovisuais, de assistir mais uma nova obras de um veterano cineasta, Ruy Guerra. Apresentado no quinto dia da 48ª edição do Festival de Gramado, o longa-metragem surge como um noir existencialista, onde Eurico Cruz (Emílio de Mello) – à primeira vista – tem uma vida dupla. É marido de duas Anas (Simone Spoladore e Christiana Ubach). Um dia ele acorda com um bilhete jurando sua morte e não sabe dizer qual das esposas fariam isso com ele. A partir daí, ele viverá uma angústia mortal.
Arnaldo Antunes surge em voz como narrador, se colocando dentro da consciência do protagonista. Este é apenas mais um estilismo que o diretor impõe à sua produção carregada de intenções. Outro icônico realizador brasileiro, que também usou a fotografia em preto e branco, uma linguagem clássica e despontou em um festival este ano foi Geraldo Sarno em “Sertânia“. Só que nada do que se aplica ao resultado final de um, podemos apontar aqui, no filme de Guerra. Todas as escolhas debruçadas em uma preciosidade estética não surtem efeito. O espectador acaba por dividir a angústia de Eurico, só que pelos motivos errados.
“Aos Pedaços” convenciona sua narrativa tentando equilibrar expressionismo e minimalismo. Valendo de uma mise-en-scène teatral, boa parte das sequências acontecem dentro de uma das três casas do personagem principal (a do deserto e a da praia, que divide suas Anas e à sua cabeça, que as une). Com isso, Ruy Guerra ilumina apenas seus atores e os poucos elementos que cumprem função direta no quadro, como se presenciássemos vagas lembranças. Por vezes, aplica a sombra de maneira a tornar quase indefinível o acontecimento. Telegrafa sua narrativa por aplicar tão excessivamente este recurso que fica na nossa mente o único objeto em destaque sem a participação do elenco: um aquário.
Eurico se define como um impostor (tal qual a síndrome) e, ao mesmo tempo, um “parasita de si mesmo”. Seus demônios familiares vêm na forma de um irmão pastor, de retórica tradicional do gênero e caminhares maquiavélicos. Ele lembra que Eurico está, propositalmente, afastado do pai. Não que o preciosismo seja gratuito na integralidade do filme. A forma como Spoladore e Ubach transitam em cena permite bonitas sequências, em que o espelhamento visual é encenado por elas. Há momentos em que espelhos são, de fato, usados – como naquela que talvez seja a melhor cena de “Aos Pedaços”, quando elas desnudam suas experiências ao mesmo tempo que materializam o sofrimento físico em forma de maquiagem.
Há outros trechos em que o referencial se impõe, mas sem uma conexão indissociável da história, como fez Sarno. É o telefone de disco que toca na mesa de canto, filmada do alto ou um diálogo em uma longa mesa de jantar com uma câmera posicionada de frente para cada um dos participantes, tal qual um embate. Criações imagéticas que parecem estar ali com a mesma função de maquiar a violência de ser o filme um tanto exaustivo. Não é confuso, mas se torna fatigante porque não há outro caminho possível no que está ali representado. Já que Charlie Kaufman voltou aos TTs por conta da estreia de “Estou Pensando em Acabar com Tudo“, há em “Aos Pedaços” uma espécie de inversão da proposta do longa-metragem anterior do nova iorquino, “Anomalisa” (2015). Enquanto o protagonista da animação projeta a mesma voz em todos com quem ele se relaciona, Eurico projeta todas as Anas, o irmão e o narrador em algo que ele não sabe mais diferenciar.
Ao invés de concentrar suas existência, o protagonista as pulveriza. Só poderia ser dele a frase pensada por uma Ana, a de que “tubarões tristes são os mais perigosos“. Somente um impostor de si mesmo atingiria tal poder de síntese. Ruy Guerra opta por não trazer mergulhos profundos, ficando na profundidade do aquário metafórico que ele elege como preponderante ao filme. Deixa aquelas mulheres transitando com umas perucas estilo Diante e Rita de “Cidade dos Sonhos” (2001) sem lhe prover sentido. No mundo de Eurico, acaba que ele se basta. Por isso que não aceita tantas vozes plurais na sua cabeça. Talvez para Ruy Guerra, a força da imagem de “Aos Pedaços” lhe baste. Mas, para o público, o que identificamos são sombras indefinidas e intenções, que nunca – de fato – foram reais.
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