Apenas Mortais

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Logo Mostra SP 2020 Sinopse: Após terminar um relacionamento com um homem casado, Xian Tian decide transferir seu emprego e voltar à sua cidade natal, para cuidar do pai, que sofre de Alzheimer. A moça acredita que sua presença possa ser um conforto para os pais nesse momento. Em “Apenas Mortais” o cotidiano da família é estremecido quando a doença atinge um estágio avançado, ao mesmo tempo em que Xian Tian começa um novo relacionamento amoroso.
Direção: Liu Ze
Título Original: 来处是归途 | Being Mortal (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 36min
País: China

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Onde é o Caminho para Casa

Apenas Mortais” é um filme que ganhou vida há poucos dias, em premiere mundial no Festival de Cinema de Pingyao, que acontece na China – país da produção. O trabalho de estreia de Liu Ze, contudo, atravessará o circuito e provavelmente fará parte das listas dos filmes mais emocionantes e tocantes da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e de qualquer outro lugar onde ele se apresente. Ao usar o envelhecimento e a relação familiar como objetos centrais, o cineasta não inova na temática – e nem mesmo na linguagem. Porém, consegue fazer a narrativa melodramática fluir através da escolha de estilo de forma tão envolvente que até os mais céticos, frios ou acostumados com as táticas de provocação de sentimento do audiovisual clássico, devem terminar a sessão emocionados.

O filme conta a história de Xian Tian (Tang Xiaoran), uma mulher na casa dos trinta anos que, após  o término de um relacionamento, vai morar no apartamento dos pais (o título da crítica é, por sinal, o título original do filme em seu país). Ao buscar seu pai no hospital, recebe a notícia do agravamento do Mal de Alzheimer, o que inspirará cada vez mais cuidados. Aqui entramos em um caminho parecido com o que o documentário “O Espião” se propunha. Estar diante do enfraquecimento e da dependência de um ente querido é uma dura experiência. Não só para a protagonista, mas também para sua mãe. Para um filho, ver a fragilidade daqueles que nos ensinaram e proveram tudo ao longo da vida é um golpe. Para uma companheira de décadas de cumplicidade e divisão de afeto, é ainda pior.

O diretor poderia colocar essa trama debaixo do braço e conquistar o público sem esforço. Só que sabe que estamos diante de um mote até um pouco desgastado. O que faz, então, é uma composição de sequências de modo a individualizar (quase) todas as cenas – em esquetes bem definidas. Dentro delas, se agarra ao envolvimento total do espectador ao torná-las todas planos-sequências de câmera na mão. Uma câmera, aliás, muito bem conduzida por Liu Ze. “Apenas Mortais” tem momentos de execuções muito difíceis, não apenas pela carga dramática exigida aos atores, que o fazem em crescendo e sem possibilidade de recomeços. Há deslocamentos de câmeras muito bem realizadas, que nos projeta na tela sem movimentos ou trepidações que nos permita se reconectar a essa lógica audiovisual.

Um trabalho parecido com o que Gustavo Pizzi fez em boa parte das sequências de “Benzinho” (2018), outra obra de panorama familiar, todavia, não levada ao extremo da linguagem como o cineasta chinês faz aqui. Isso é tornar um filme puramente sensorial – mesmo se valendo de narrativa clássica, diálogos e representações que o aproximam de uma obra padronizada. Provavelmente essa construção justificará as suas lágrimas ao final. Parece algo gestado por um mestre – e talvez o seja. Se não há motivos ainda para celebrar a carreira, celebremos a obra. O trabalho de Liu aqui é esplendoroso.

Falamos que a individualização de cenas é quase total, porque há duas quebras curiosas. A primeira marca o início do segundo terço de “Apenas Mortais” e é a primeira vez que Xian Tian sai da rotina apartamento-hospital, motivada por uma nova paixão. Ao visitar o que parece ser sua antiga escola, Ze brinca com a própria linguagem criada. A sequência começa de forma espetacular, em que ele traz duas gerações (o casal na casa dos trinta e o grupo de alunos adolescentes) em planos diferentes, invertendo esses planos e não cruzando os núcleos de personagens – isso tudo em uma sequência sem cortes. Quando o corte vem, somos levados ao refeitório, sendo os atores posicionados quase no mesmo ponto da tela em um cenário de cores e objetos muito parecidos.

A segunda é a mais tocante, sendo o clímax do filme. Claro que não revelaremos, mas podemos dizer que – em uma das mais longas sequências – o elemento principal só é revelado ao final da cena, mesmo sempre estando lá. Isso torna a interpretação de Tang Xiaoran nesse ponto ainda mais destacada, porque ela consegue manter o estágio de suspensão ao mesmo tempo que reage à informação que já possui. É como subverter a lógica hitchcockiana de mostrar ao público e esconder do personagem. Durante o restante do longa-metragem há uma preocupação em demarcar esse distanciamento, mostrando que cada novo evento surge em um novo dia. Para quem convive com pessoas com Alzheimer é assim, há momentos muito críticos, de severas dificuldades e há outros, de lapsos de uma consciência dolorida por tudo o que se passa. As mudanças de roupas é fundamental para tornar a última cena ainda mais bonita, quando parte do figurino é resgatado entre os três personagens principais.

A narrativa ainda aborda a questão do custo dos tratamentos de saúde e o conceito de honra tradicional do povo chinês, sem contar o choque geracional de uma juventude mais permissiva com a fluidez dos relacionamentos. Por sinal, o filme – sem perder o foco no núcleo familiar – reserva um espaço para ampliar o protagonismo de Xian no momento certo, em que sua vida avança para além do que se passa no apartamento de seus pais – mesmo com as cobranças e as decepções pessoais que aqueles que vivem a própria crise, a dos trinta, precisam lidar.

Dentro da linguagem tradicional, “Apenas Mortais” terá poucos concorrentes nos próximos meses no quesito emoção. Mas não se prenda apenas nisso, estamos diante de uma pequena aula sobre cinema no que diz respeito à condução dessas emoções. Se a primeira experiência só lhe fez chorar, revisite o filme sempre que for possível.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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