Sinopse: Sobode Chiqueño registra em um gravador de fita cassete a memória dos Ayoreo no Chaco paraguaio. Em uma abordagem dialógica, ele busca compreender o passado e o presente do processo de evangelização de seu povo, ao mesmo tempo em que anseia recuperar, sem esconder o sentimento de repulsa em relação à violência branca, os vestígios de um paraíso perdido. Em “Apenas o Sol”, as imagens de Ullón, dedicadas especialmente aos rostos de quem fala numa série de conversas organizadas pelo personagem, abrem outras expressividades a um precioso acervo de palavras.
Direção: Arami Ullón
Título Original: Apenas el Sol (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 14min
País: Paraguai | Suíça
Memória em Conflito
A verdade é que não sabemos para onde estamos indo enquanto sociedade. Se já não bastasse a pouca vontade política de se preservar o que ainda existia de sustentável, tanto nos aspectos biológicos quanto culturais ao redor do mundo, os últimos anos revelaram um desejo de ir além, de transformar a destruição como meta. Não se esconde nem mesmo um falso desejo de progresso, pouco se fala na tal competitividade. É quase como se os detentores do poder quisessem testar a capacidade do planeta e das pessoas de chegar ao limite de sua existência. Em “Apenas o Sol“, longa-metragem dirigido por Arami Ullón e parte da mostra Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema, o protagonista Mateo Sobode Chiqueño é muito confrontado, quase como se nadasse sozinho em mar revolto.
Talvez uma das principais entrevistas no canal do festival no YouTube seja a da cineasta com Leonardo Bomfim – e que você assiste ao final desse texto. De forma generosa, ela destrincha alguns aspectos de produção que ajudam a elucidar alguns de seus objetivos. Um projeto que durou sete anos e que, em quase metade desse tempo, transitou por grupos Ayoreo no Chaco paraguaio sem captar nenhuma imagem. Um equipe de filmagem branca aplicando a observação pura e acompanhada de um representante que, há décadas, realiza gravações de fitas cassetes com diálogos com seus pares. Os mesmos que irão confrontá-lo em quase todas as leituras sociais que ele faz.
Outro ponto que vale mencionar é o entendimento de Mateo como produtor de memórias não apenas faladas. Ele também cria registros audiovisuais há algum tempo, tendo a noção de que algumas escolhas serão feitas mais adiante. Mais do que o protagonista, ele se torna aliado de Ullón, que inicia esse percurso motivada pelas próprias lembranças e de sua família e opta por tornar as fitas de Chiqueño (preservadas pelo trabalho da Iniciativa Amotocodie) apenas outro personagem do documentário, revisitando pouco e produzindo muito.
Veja o Trailer:
Como escolha também fundamental, apenas o primeiro plano tomando pelos rostos daquelas pessoas, encontra foco definido. A realizadora esclarece que foi uma decisão política, na qual as palavras e encontros do povo Ayoreo ganhassem o protagonismo, deixando de lado possíveis leituras atravessadas sobre aquele território. Revisitar o início da sessão nos leva a conclusões ainda mais profundas quando temos essa informação. “Apenas o Sol” mostra um Mateo cansado do nomadismo, de desbravar aqueles espaços como se pudesse catalogar e tornar mais perene a cultura local, sem qualquer tipo de apoio.
Em muitos diálogos, tanto a ideia de progresso quanto a velha dicotomia entre selva e civilização parecem absorvidas pelos outros. Uma construção de ideia eurocêntrica que se incrustou nos povos originários da América a partir da união entre a violência e a fé. Como parte importante da colonização, a religiosidade que contribuiu (e muito) para o etnocídio se estabeleceu com tanta propriedade que hoje é difícil relacioná-lo apenas ao colonizador. De forma ardilosa, desenvolveu novas dinâmicas, fingiu adaptar-se enquanto discurso para abarcar a todos que ela gostaria de, no âmago, destruir. De forma ousada, o protestantismo neopentecostal está presente no filme de maneira emblemática.
O som do documentário é um aspecto à parte. Boa parte das trocas entre Mateo e sua comunidade é acompanhada de uma quietude. Porém, ela não traz nenhuma paz, dá muito mais a sensação de uma cultura em extinção, da última fase de silenciamento e de apagamento. Agora, veja: mesmo com flagrantes esmagamentos, objetivando a perda dos aspectos identitários; mesmo com todos os recursos naturais que garantiam os hábitos de vida tradicionais sendo parte das invioláveis propriedades dos brancos; mesmo com as dinâmicas sociais gerando novas demandas e de toda sorte de doenças como consequência;, Chiqueño nunca parece convencer os outros do ponto nevrálgico do problema.
Um deles até chega perto de se tornar um parceiro mais forte nessa luta. Compreende que os Ayoreo absorveram elementos da branquitude através dos tempos e que isso não gerou qualquer tipo de acolhimento. Enquanto unidade de povo, deixaram questões mal resolvidas dificultarem o diálogo e, quando viram, uma nova peça no tabuleiro da dominação foi colocada por parte do Estado opressor. A ponta final de “Apenas o Sol” mostra como, não obstante as demarcações indig(e)nas dos governos latino-americanos, sempre há atualização nas medidas etonocidas. Uma das mais recentes no território é a concessão de um auxílio (muito abaixo de um salário-mínimo vigente no país) que exige para sua retirada um documento de identificação oficial reconhecendo a cidadania paraguaia. Se isso não é esmagamento cultural…
Nos últimos tempos, Ailton Krenak tem falado em entrevistas sobre o divórcio da Humanidade com a vida na Terra. Para ele, a dúvida em relação à sobrevivência está relacionada ao homem branco. Esse parece não ser resistente a uma ação da Natureza, em oposição às suas atitudes que levam propositalmente ao caos. Lembra que os povos originários passam por isso há mais de cinco séculos e possuem muito mais conhecimento para superar as adversidades. Talvez por isso a elite econômica tenha sentido o senso de urgência em não deixar mestres resilientes como Mateo Sobode Chiqueño fazerem escola.
Assista à conversa de Leonardo Bomfim com Arami Ullón sobre “Apenas o Sol”: