Árido Movie

Árido Movie Critica Filme Brasileiro Cinema Nacional 2005 Lírio Ferreira Pôster

Sinopse: O Filme narra a trajetória de Jonas, que, desgarrado da família desde pequeno, é apresentador da previsão do tempo em um canal de televisão em São Paulo. O inesperado assassinato do pai obriga-o a fazer uma jornada de retorno as suas origens. Mas, Jonas desconhece o verdadeiro motivo de sua volta, solicitada pela avó, Dona Carmo, que escolhe-o para vingar a morte do pai e lavar a honra da família. Ao chegar a Rocha, sua cidade natal, Jonas encontra um clima de vingança pairando no ar. O enterro do seu pai é carregado de emoções dúbias. É aí que Jonas descobre o seu infortúnio: o peso de ser o herdeiro de uma realidade que já julgava não ser mais a sua.
Direção: Lírio Ferreira
Título Original: Árido Movie (2005)
Gênero: Drama
Duração: 1h 40min
País: Brasil

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Morte e Ressurreição

O Cinema Brasileiro em seus ciclos de mortes e ressurreições acaba tornando qualquer panorama de produção audiovisual um mosaico muito mais complexo do que os lindos vitrais de igrejas católicas. Principalmente para realizadores que atravessam gerações. Por trás da autoria e da trajetória pessoal de um Neville d’Almeida, por exemplo, há tudo o que circunda a sociedade e a forma de explorá-la pela arte ao longo de sua carreira. Em “Árido Movie“, o cineasta Lírio Ferreira – em seu primeiro longa-metragem sozinho na direção, após o bem-recebido trabalho anterior, “Baile Perfumado“, usa como premissa a morte de um Lázaro. Não aquele que Jesus ressuscitou (e também poderia, já que o filme anterior partia da mitologia cangaceira). O Lázaro aqui é o pai de Jonas (Guilherme Weber), um jornalista que apresenta a previsão do tempo em um canal de TV.

Radicado em São Paulo, ele retorna a Vale do Rocha, de onde saiu ainda criança, por conta do falecimento do progenitor. Nas duas pontas da obra, Lírio dá um tom lynchiano brazuca. O epílogo como uma grande alegoria (em galeria) sobre o uso da arte também como forma de representação de uma realidade projetada só não é mais curioso que o prólogo, que coloca a banda da Jovem Guarda, Renato e Seus Blue Caps, como pré-show de um road movie quase tão desafiador quanto pegar a mulholand drive. A Recife contemporânea que o protagonista encontra é diferente daquela que ele imaginava encontrar. Mais quente do que o normal e com racionamento de água. Iniciando uma condução de carreira que trará questões ambientalistas para a construção de suas obras, o diretor leva o registro da ancestralidade para outro caminho.

Exibido na mostra Orizzonti do Festival de Veneza de 2005, “Árido Movie” teve uma carreira mais discreta no circuito, mas é o grande trabalho de Lírio. Uma pena as doze indicações ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2007 não ter se convertido em nenhum troféu, mas o Prêmio Guarani deu a Murilo Salles o importante reconhecimento enquanto diretor de fotografia. Depois de dez anos intensos, com grandes trabalhos como “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1976), o vencedor de Gramado “Cabaret Mineiro” (1980) e “Eu Te Amo” (1981), ele retornava após mais de vinte anos para contribuir muito com uma narrativa sobre um homem que aplica um olhar estrangeiro diferente do Benjamin de “Baile Perfumado”. Filho daquela terra, Jonas não se sente conectado àquele território, parte da viagem é encontrar um pouco de sentido – e sentimento – para não tornar sua ida a Rocha um ato meramente protocolar. Esse estranho retorno adquire, então, uma tonalidade um pouco mais documental. Com dificuldades para resgatar referências sobre a sua origem, o personagem acaba desenvolvendo um novo vínculo.

Soledad (Giulia Gam) é uma documentarista que vai para a região objetivando entrevistar um líder religioso de grande força. Na área seca do Nordeste brasileiro, ele é quase tão milagreiro quanto aquele que ressuscitou outro Lázaro. Para parte dos moradores daquela comunidade, é um representante de Deus por ser dono de várias cisternas que provisiona água para seus fiéis. Uma nação cada vez mais mergulhada na teologia da prosperidade em que a mão que opera o milagre é a irmã da que promove a miséria. Um assistencialismo que não quer resolver o problema, não vê vantagem em ser temporário. Um processo que transforma nossos iguais em gado, em conluio com o coronelismo.

Veja o Trailer:

Só que, em “Árido Movie“, Jonas quer apenas chegar a Rocha e enterrar o pai, um Paulo César Peréio que consegue ser marcante até enquanto defunto em um caixão. Lírio Ferreira traz como alívio cômico um grupo de amigos, liderado por Selton Mello, que pega a estrada para encontrá-lo. Conduzindo a narrativa, a trilha sonora registra um momento especial na carreira de Kassin, que se destacava enquanto produtor do encontro de Caetano Veloso com Jorge Mautner em “Eu Não Peço Desculpas” de 2002 e os inesquecíveis “Ventura” (2003) e “4” (2005), dos Los Hermanos.

Insere a si e a Otto em uma fenda temporal que, a partir dos teclados de Lafayette Coelho (que infelizmente nos deixou em março deste ano) – nos levando de volta a um período de efervescência musical que moldou a cultura popular das décadas seguintes. Isso contribui para a ideia sobre uma ancestralidade imposta, uma origem confusa nesta mistura de referências midiáticas e registros que nos chegam. A modernidade e seus meios tornou mais difícil e nebulosa a identificação sobre o que é saudade que vem do âmago ou aquela que reproduzimos a partir de um saudosismo provocado. Do gol do Uruguai em 1950 ao 7×1 de 2014. Dos teclados de Lafayette ao Los Hermanos na Fundição.

Isso torna mais complexa as leituras sobre Jonas e o entendimento sobre o desejo de vingança pela morte do pai. Em uma segunda metade mais contemplativa (na crítica de “Baile Perfumado” também mencionamos esse espelhamento imersivo), Rocha começa a ganhar vida própria em ajuste políticos e a ideia de que o progresso nunca será pleno porque ele é um ideal que precisa ser vendido. Pela política e pela fé. Outra perspectiva dentre as várias que Kleber Mendonça Filho revisitaria pelo olhar violento de “Bacurau” (2019). Se já não bastasse tantas propostas de leitura, “Árido Movie” traz participações das mais diversas e incríveis, que vão de Cláudio Assis como um motoqueiro mal encarado a Xico Sá com o que ele sabe fazer de melhor, ser jornalista – passando por uma jovem Lila Foster. É um registro com ares de festa da produção nacional, como parece ser grande parte do pulsante cinema pernambucano.

Revisitar Vale do Rocha muitos anos depois – e emendar com uma segunda sessão de “Acqua Movie” foi uma das melhores viagens que a Apostila de Cinema fez nos últimos tempos. Lírio Ferreira parece ciente, antes mesmo das consequências do período progressista que se iniciava, que os arranjos do capital não tardariam. Ao voltar àquele território quase quinze anos depois, ele nos dá uma contribuição colocando uma lupa em um espaço fundamental para entender o Brasil. Otto e Lafayette nos leva a outra revisitação ao final, lembrando “Naquela Mesa“. Composta por Sérgio Bittencourt, ela exala a saudade dele por seu pai, Jacob do Bandolim. Na falta de referências, poderia Jonas ficar com essa dor projetada e musicada.

Porém, antes disso “Árido Movie” nos leva de volta a São Paulo, no tal epílogo lynchiano do protagonista. Alegórico e performático em certa escala, o cineasta mostra que ancestralidade sem respeito corre o risco de se tornar arte vazia. Em uma galeria tentamos entender a simbologia. O que há de genuíno e o que há de cooptação naquelas representações. O filme que traz Weber novamente como Jonas já gerou uma crítica, bem mais introspectiva e reflexiva à obra. Não faremos uma nova. Porém, se você chegou aqui curioso sobre os passos seguintes do filho de Lázaro, saiba que ele não encarou a morte como chance de ressurreição. Foi apenas uma aventura.

Ouça “Naquela Mesa”, na voz de Otto:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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