Artigo | 16ª CineOP | Mostra Valores

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Materialidade Imaterial

Passados tantos meses de resguardo em casa – e a Apostila de Cinema em nome de Jorge Cruz e Roberta Mathias registra que nossas saídas de casa se limitam às providências básicas de sobrevivência, leia-se supermercados, padarias, farmácias e combate a Presidente genocida – muito se discutiu, rediscutiu e cansou de ser assunto a adaptação dos eventos de cinema para o formato online. Mesmo assim, acaba se tornando impossível não entrar neste assunto em todas as conversas que temos. Seja preparando as coberturas, repassando nossas experiências enquanto produtores de conteúdo, ou nas entrevistas que realizamos.

Se dentro da mostra contemporânea, falamos em nosso texto sobre a Sessão Cine-Teatro que o cineasta Pedro Tavares nos provocou a repensar uma terceira configuração (nada de terceira via, por favor) enquanto formação do conceito de cidade, fato é que estamos absorvendo de forma perigosa o distanciamento social naturalizado. Pesquisadores já começam a se preocupar com a retomada de interações, que para parte de nós já soa indesejada. Nos acostumamos com esta dinâmica restrita, tanto na mente quanto em nossos corpos e isso há um tempo tem nome: Síndrome da Cabana.

Essa viagem que parece sem sentido no início do artigo dialoga de maneira intensa com a Mostra Valores desta 16ª Cine OP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Por sinal, nunca foi tão importante trazer a grande motivação por trás da produção de um festival de cinema: a ocupação de espaços. O festival não tem Ouro Preto no nome à toa, seus objetivos enquanto projeto cultural é fomentar turismo, movimentar economia, levar o audiovisual contemporâneo para um território historicamente responsável por grandes debates formadores da sociedade brasileira.

O cinema não é um detalhe na CineOP, mas é parte de um conjunto de iniciativas. Algumas delas adaptáveis para o mundo digital, como o encontros da Rede Kino, os simpósios e debates que envolvem as temáticas de educação e preservação, dentre outros. Performances, apresentações musicais e até exposições fotográficas se estabeleceram a partir de um grande esforço da equipe da Universo Produção, que desde meados de 2020, quando a pandemia de covid-19 já demonstrava que duraria mais do que imaginávamos de início, tomou as providências para ir além da disponibilização de obras.

Contudo, não é Ouro Preto. A nossa casa e nossa rotina impedem que nos transportemos de forma plena, mesmo que espiritualmente, para as ladeiras históricas. Por mais que manifestações, como a do professor Rafael Conde, diretor de “O Suposto Filme” (assista à conversa clicando aqui), mencione os benefícios envolvendo o alcance do evento e a chance de esgotarmos quase todo o catálogo disponível, o futuro não deve passar por uma aceitação total do formato. Porque não é essa a missão da arte, muito mais da promoção de encontros de realizadores, críticos, pesquisadores, público interessado e populares que se envolvem com tudo isso.

A Apostila de Cinema poderia citar outras qualidades deste desenvolvimento de uma mostra de cinema portátil. Bastaria uma delas para convencer quem acompanha e gosta do nosso trabalho: se não fosse o formato online jamais conseguiríamos cobrir os festivais que fizemos nesse nosso primeiro ano (completado no final de maio, assista aqui nosso programa especial). Isso independente de existir um isolamento social, já que precisaríamos nos estabelecer financeira e mercadologicamente para conseguirmos isso. Porém, não trazer uma manifestação voltada ao assunto e lembrando da relevância do presencial tornaria todo este trabalho menos fiel aos seus princípios.

Enquanto plataforma que quer discutir a sociedade através do audiovisual, temos que lembrar que esta sociedade não existe com indivíduos isolados em caixas que chamam de casa. Não suprimos por completo o desejo por visibilidade em lives. Não atingimos todas as consequências da arte enquanto mensagem apenas nos nossos sofás. É preciso estar na rua – e as últimas semanas mostraram que é preciso reocupá-las antes que a contagem de mortos e o sentimento de derrota leve nossas forças.

Artigo | 16ª CineOP | Mostra Valores

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A Mostra Valores, então, ganhou peso ainda maior nesta edição. Pensada enquanto veículo de promoção da cultura local, é nela que encontramos a Ouro Preto, patrimônio cultural da humanidade reconhecida pela UNESCO desde 1980. Aqui, nessas quatro produções, podemos quase sentir o cheiro, o gosto, a textura de um território que diz muito sobre o Brasil, pilhado, explorado, escravizado, apagado, invisibilizado, precarizado, sufocado – e forte. Também temos acesso ao conteúdo da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) enquanto agente formador e fomentador de debates na comunidade.

Produzido pela Prefeitura de Ouro Preto, “Bordando o Patrimônio – Costurando Memórias” fala do artesanato e suas múltiplas funções na sociedade. Depoimentos de um grupo de senhoras denotam a ótica familiar, de tradição e, claro, de sustento daquelas mulheres. Mais do que isso, um importante meio de socialização, a mesma que se mostrará ainda mais urgente quando a massa que segura a epidemia em curso mantendo todos os cuidados finalmente poder se expor como gostaria.

Iniciando as obras envolvendo a TV UFOP, “Mais que Doce” carrega outro tipo de saudade, aquela que se vincula às viagens em que o paladar é parte da inesquecível experiência. Momento em que gritamos por socorro ao nos depararmos com a impessoalidade de visitar esses territórios no desconforto do sofá, em mais um festival online, um ano e meio depois. Pode encomendar pela internet doce de leite, de abóbora ou goiabada direto do produtor, que o gosto nunca será o mesmo de partilhar espaços, de respirar o ar que faz essas várias magias acontecerem. Por isso, o reconhecimento enquanto patrimônio imaterial só faz sentindo quando vislumbramos a materialização dessas experiências.

Terminando a sessão da Mostra Valores, os dois primeiros episódios da série “Minha Voz – Minha Vez“. Indicamos visitar o canal oficial da TV UFOP no YouTube e acompanhar todos eles. Aqui uma das grandes carências da não-existência física de eventos como a CineOP. Os personagens daquele território, que se apresentam de forma breve e são entrevistados de forma direta e dinâmica pela historiadora Sidnéa Santos. Dona Cecília construiu sua casa e criou os três filhos a partir do artesanato. Antônio Xisto lembra dos quase 40 anos de trabalho e vê com pessimismo o esvaziamento da cidade.

Esse esvaziamento que não podemos deixar acontecer. Essa vida da presença ausente nos matará rapidamente. Precisamos de trocas e de afetos. A Universo de forma muito generosa traz um pouco do cheiro, gosto e textura de Tiradentes e Ouro Preto aos credenciados para a cobertura, com o envio de café ou chocolate local. Para o público, criou uma loja virtual em que podemos contribuir e levar mais um pedaço do evento. Para a casa, claro, não temos vacinas suficientes para sairmos daqui por ora. Só sei que uma hora sairemos. Temos que sair. Será o momento em que podemos, depois de um dia de muitos filmes e conversas nas praças e salas de uma futura CineOP, dermos conta de que esta tela que não aguento mais olhar voltou a ser apenas uma ferramenta e não a única vida que conseguimos ter.


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Ficha Técnica da 16ª CineOP | Mostra Valores

Bordando o Patrimônio – Costurando Memórias (Fabiano Souza, 2019, 15′)
Sinopse: Perto de celebrar 40 anos como Patrimônio Cultural da Humanidade e lembrar o tricentenário da Sedição de Vila Rica, que marca o “nascimento de Minas”, a obra registra o ofício das bordadeiras e rendeiras, como bem imaterial do município. O documentário mostra pessoas reais em seu cotidiano, valorizando este ofício centenário, sendo o filme todo gravado por celular. A partir da Secretaria de Cultura e Patrimônio, regisrou-se em entrevistas um pouco da história das bordadeiras e rendeiras.
Mais que Doce (Arthur Medrado, 2018, 10′)
Sinopse: O documentário apresenta as relações afetivas por trás da produção dessas delícias ouropretanas: sustento, trabalho, negócio, tradição, desafios e laço social. Esses são os componentes fundamentais para o processo de revalidação do registro da produção de Doces Artesanais de São Bartolomeu/MG (2008-2018) que completa 10 anos como primeiro bem do patrimônio imaterial registrado no distrito.
Série Minha Voz – Minha Vez – Episódio 1 – D. Cecília – Tapes de Arraiolo (TV UFOP/ Universidade Federal de Ouro Preto, 2019, 13′)
Sinopse: Neste episódio fomos recebidas por D. Cecília Ferreira, artesã de 80 anos, ouropretana, criada no tradicional bairro do Veloso. Dona Cecília é conhecida por seu trabalho manual em ponto de Arraiolo, hoje, além de participar em feiras de artesanato, ensina o seu ofício para outras pessoas em sua residência. Em um cenário fascinante, Cecília nos revela sua trajetória enquanto mulher negra na cidade de Ouro Preto, suas estratégias de sobrevivência e principalmente a importância da comunhão entre mulheres. Salve Capitão D. Cecília!
Série Minha Voz – Minha Vez – Episódio 2 – Capitão Xisto – Congado (TV UFOP/ Universidade Federal de Ouro Preto, 2019, 13′)
Sinopse: Antônio Xisto é capitão da Guarda de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia do distrito de Miguel Burnier, município de Ouro Preto/MG. Nesta emocionante conversa, Capitão Xisto nos apresenta um pouco sobre sua trajetória de resistência, a qual perpassa a atividade mineradora e o consequente esvaziamento da cidade, sua fé, sua alegria e sobre a fartura das festas de Congado. Um episódio delicado e lúcido, feito por um grande Mestre da região que aos 83 anos se mantém atual e ativo na comunidade. Salve Capitão Xisto!

Clique aqui e acesse a página oficial da 16ª CineOP.

Clique aqui e leia os textos produzidos na nossa cobertura da 16ª CineOP.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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