Leia “A Saga do Orfeu Brasileiro”, um artigo especial em memória a outros Carnavais.
A Saga do Orfeu Brasileiro
Não é segredo que sou uma obcecada pelo mito de Orfeu e Eurídice. Como toda monotemática, posso jurar que já devo ter escrito sobre este em alguma linha dessas apostilas. Não sei ao certo quando e qual o motivo. O mito, no entanto, me persegue. Assumo, e sigo, como Orfeu.
Devo dizer, sem nenhum glamour que me aproxime do tema central desse breve artigo, que quem primeiro me aproximou do mito foi “Vidas em Fuga” (1960), de Sidney Lumet com o icônico Marlon Brando – e deixarei aqui, por um momento, as polêmicas (já que somos contra todas as declarações machistas do ator). Ainda jovem, Val Xavier me foi apresentado como primeiro Orfeu. Somente anos mais tarde saberia se tratar de uma adaptação de Orpheus Descending (1937), do escritor estadunidense Tennessee Williams. Por volta do início dos anos 2000, uma edição especial da obra do dramaturgo chegava às minhas mãos e, assim, descobria o mito de Orfeu.
Seguindo meus passos, chegou uma versão de Poemas em Quadrinhos de Dino Buzatti no ano de 2010, publicada originalmente em 1969. Pulou para meu colo através da capa. Uma nova fase da obsessão iniciou-se e, somente aí, fui rever “Orfeu Negro” (1959) (também conhecido como “Orfeu do Carnaval”) de Marcel Camus. Com olhar bem mais apurado que o da menina dos anos 00 que iniciava a faculdade deCinema, pude reparar as nuances da obra e entender sua mística.
Inspirado na peça “Orfeu da Conceição“, de Vinícius de Moraes, a primeira versão cinematográfica do Orfeu Brasileiro do final da década de 50 foi apresentada por um cineasta francês. Em sua sequência de introdução o filme já nos traz a beleza plástica da direção de fotografia de Jean Bourgoin – também responsável pelas imagens em “Meu Tio” (1958), “O Mais Longo dos Dias” (1962) e “Germinal” (1963) e uma série de clássicos ao longo de algumas décadas. Essa sequência traz também uma das músicas da dupla Tom e Vinícius, “Felicidade“.
Ouça “Felicidade”, da trilha sonora de Orfeu Negro (1959):
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Assim, a câmera acompanha os corpos de mulheres que carregam latas na cabeças, pelas curvas do morro, enquanto escutamos a chorosa voz da bossa-nova ao fundo. Há quem possa achar demasiadamente ritualístico ou muito exótico. O próprio Vinícius não gostou do resultado da obra. No entanto, ela ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1959 e, no ano seguinte arrebatou o Oscar de melhor filme estrangeiro e o prêmio do Globo de Ouro na mesma categoria. Não dá para dizer que o longa-metragem passou silencioso, sendo até hoje uma referência de brasilidade aos olhos internacionais.
Sobre o exotismo iremos falar um pouco aqui e mais um tanto no episódio do Apostila Convida que vai ao ar nesse dia 12, véspera de um Carnaval que não irá existir, com o professor Dr. Edson Farias da UNB. Ao levar uma parte do Rio de Janeiro, carrega também um imaginário de Brasil para as telas de todo o mundo.
Assista ao Apostila Convida #035 especial de Carnaval, com Edson Farias:
Eurídice (Marpessa Dawn) chega da região Norte do país dentro de um navio que é o próprio Carnaval. Entre cores e sambistas, vê seu destino mudar a partir do momento no qual pisa em solo carioca. Com figuras caricatas (ou exageradas, caso prefiram e, talvez seja mesmo a palavra adequada), o Rio de Janeiro apresentado inicialmente à Eurídice é o de festa. Chegando à cidade justamente no decorrer de nosso mais famoso baile – e que baile! – não poderia ser diferente. Podemos dizer que a apresentação da cidade é um condensado do que deveria ser o carnaval de rua por aqui em meados da década de 1950 desvelando também um tanto do machismo (2021 e, ainda…).
Pelos Arcos da Lapa cruzamos o Centro da cidade em direção à Santa Teresa e continuamos a nos deparar com frases que hoje nos soam, no mínimo, estranhas e demonstram a fragilidade da moça que chegava sozinha ao centro do que era o Brasil exportado – com tudo o que ele tinha de bom e de ruim.
Temos, então, Orfeu (Breno Mello) e Hermes (Alexandro Contantino). Na adaptação brasileira, ambos viram condutores de bondes, o que condiz com suas funções. A abertura de “Orfeu Negro”, com belas estátuas gregas, deixa claro que irá manter uma certa conexão com a obra que a inspirou. O escrivão logo anuncia a trama central com Mira (Lourdes de Oliveira) atuando como impasse para a felicidade do casal Orfeu e Eurídice.
Em um dos mitos originais gregos, o filho de Apolo e Eurídice são um casal apaixonado, porém essa morre picada por uma cobra. Orfeu, então, enfrenta o submundo atrás de sua amada. O único senão para o bravo herói seria não olhar para trás, provando, assim, sua coragem e amor profundos. O elo que une as duas histórias, para além do amor a ser conquistado – na paz dos Orixás e dos deuses – é a música. Dentre muitas habilidades, como a comunicação, Orfeu é também reconhecido como grande musicista e poeta. Aqui, retomo o Poema em Quadrinhos de Buzzati que ressalta a facilidade melódica e de expressão poética de Orfeu. Parecido talvez, um pouco, com nossa dupla Tom e Vinícius.
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Já na casa de sua prima Serafina, a maravilhosa Léa Garcia, Eurídice nos revela os motivos de sua fuga. Nosso Orfeu tem o dom da invencionice e da viola. Assim, encanta Eurídice. Os pormenores da trama deixemos que cada um experimente sem uma narrativa mais minuciosa, mas a questão que gostaríamos de levantar aqui é, justamente, sobre um olhar estrangeiro de e para o Brasil. Um olhar europeu e francês. Levi-Strauss e Pierre Verger já o vinham fazendo ao longo do início do século XX e Marcel Camus aparece como mais um francês interessado em nossa cultura.
Completou, nos anos seguintes, uma espécie de trilogia com “Os Bandeirantes” (1960) e “Otália da Bahia” (1975) criando laços com nossa cultura, casando-se inclusive com sua musa Lourdes de Oliveira que atuou em dois de seus filmes (para saber mais sobre a trilogia de Camus, sugerimos o artigo do pesquisador Tunico Amancio – que você acessa por esse link).
Não podemos afirmar, no entanto, como essas primeiras linhas fazem parecer, que a percepção do filme soou de todo romantizada por aqui. Apesar o olhar distanciado e, até mesmo por conta dele, Orfeu de Camus, tem uma câmera exploratória que beira imagens documentais – como conversei como o outro lado da Apostila, Jorge Cruz durante nossa travessia pela Avenida. Isso faz com que o longa-metragem se torne interessante não somente pela movimentação da câmera, mas pelo que essa revela. O interesse de Camus por essas terras nos fez retomar a reflexão que este artigo inicia na conversa com o professor Edson (certamente, um dos pontos fortes de nossa cobertura do não Carnaval) sobre a relação França-Brasil. Um dos pontos que o pesquisador ressaltou e, ao qual não podemos fugir, é o fato da relação vir de décadas. Desde as expedições exploratórias e dos desenhos de Debret, passando pelo já citado fotógrafo Verger, que acabou por centralizar na Bahia e em seus terreiros seu interesse pela cultura popular.
Esse, talvez, seja o ponto central de recriação do mito em terras brasileiras. Aqui, ele passa necessariamente pelo samba e pelo morro carioca. Pelo menos nas versões que nos foram apresentadas até o momento, todas vinculadas à obra iniciática de Vinícius.
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Sabendo que deixei de explorar inúmeros debates, passo ao segundo filme, “Orfeu“. Datado de 1999 e dirigido por Cacá Diegues, a segunda apresentação de Orfeu no cinema com cenário brasileiro vem acompanhado da produção da Globo Filmes. É preciso lembrar que, nesse momento estávamos novamente consolidando a indústria cinematográfica no país após o desmonte da Embrafilme em 1990. Esse segundo Orfeu já se aproxima de maneira o diretor já mais sólida de um filme que poderia ousar após a experimentação da retomada.
Diegues nos traz um Orfeu mais agridoce, apresentando outro lado do morro. Bom lembrar que o diretor já havia passado pelo Cinema Novo com “5x Favela“, de 1962 (filme que também ganha nova versão, intitulada “5x Favela – Agora por Nós Mesmos” em 2010 – apesar de somente citados, ambos merecem um texto próprio). O território de Cacá é outro. Bem mais demarcado pelo tráfico, pelo crime e por figuras ambíguas. Se o primeiro Orfeu vence no quesito estético, o segundo aponta para uma realidade mais fragmentada. Bem verdade que os tempos eram/são outros e, não haveria como fugir à temática ainda que se quisesse remeter ao mito.
Ouça “Sou Você”, da trilha sonora de “Orfeu” (1999)
O Orfeu do diretor vai também à passarela com o desfile da Unidos do Viradouro de 1998 cujo o enredo foi… Adivinhem? Orpheu, o Negro do Carnaval. A produção possui, assim, uma mimética perpassada por camadas de representações do mito, mas também da cidade e de sua relação com o samba. Por mais que mostre um, no máximo, esforçado Toni Garrido (que à essa altura vivia seu auge como figura da banda Cidade Negra), mas não consegue mostrar muito nas telas e, por outro lado, apresente um Diegues longe de seu melhor a releitura ainda vale pela reflexão territorial à qual se propõe.
De 1959 e, podemos dizer de 1999 para cá, pontos centrais debatidos pelos dois Orfeus ganham dimensões mais rugosas conforme a cidade reapresenta as desigualdades fundantes sobre as quais foi construída e remodelada no início do século XX. Marcel nos deixa uma saída através do futuro. Cacá já não aponta qualquer uma, apesar da arte em continuidade estar presente no filme a partir do funk. Resta saber o que desejamos para o Orfeu de 2029.
Ouça o samba da Viradouro de 1998, “Orpheu, o Negro do Carnaval”:
Clique aqui e leia a crítica de Orfeu Negro (1959)
Clique aqui e leia a crítica de Orfeu (1999)
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