Sinopse: Em entrevistas tão íntimas quanto desconcertantes, conhecemos Delphine, imigrante camaronesa residente na Bélgica que narra sua vida para a câmera da também camaronesa Rosine Mbakam. Como em seu longa anterior “No Salão Jolie” (premiado no Olhar ’19), a concisão de elementos é transformada em força cinematográfica alicerçada no encontro entre mulheres negras ao mesmo tempo próximas e distantes. O tom confessional da protagonista em “As Preces de Delphine” revela a consciência de si como condutora da própria história, às voltas com cicatrizes patriarcais e coloniais e na busca por afirmar uma própria voz.
Direção: Rosine Mbakam
Título Original: Les Prières de Delphine (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 31min
País: República dos Camarões | Bélgica
Escutais Todos e Compreendei!
Em determinado momento de “As Preces de Delphine“, a protagonista e único corpo em transição nas cenas do documentário dirigido por Rosine Mbakam assume seu caráter atuante e, em parte, performático. O contexto em que isso ocorre, nas dinâmicas de mais um excepcional longa-metragem exibido na mostra Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema, é bem mais fluido e, portanto, menos impactante para o espectador na comparação com essa abordagem cortante do início de um texto.
Ao longo de dez dias, a cineasta camaronesa radicada na Bélgica capta depoimentos de sua conterrânea – de terra-natal e de radicação. São poucas as intervenções da diretora, que também conduz a obra com elementos que nossos olhos não permite alcançar. Ela opta pela frontalidade nas falas de sua personagem em quase 100% do tempo de projeção. Quando se coloca enquanto articuladora de intenções, traz uma questão importante: a de que as duas se unem no país europeu por uma atratividade imposta pela visão preconceituosa, discriminante e estereotipada na sociedade onde estão inseridas.
Do passado de Rosine sabemos menos do que da depoente. Dentre elas, a de que foi premiada na oitava edição do festival por “No Salão Jolie” (2019). Portanto, não temos uma base para definir os elementos que antagonizam as duas mulheres que, aos olhos da branquitude europeia são, definidas pela própria cineasta, negras e africanas.
Veja o Trailer:
A relação de confiança é percebida no olhar da protagonista. Em “As Preces de Delphine” ela dificilmente baixará o rosto e procura a todo tempo a figura de Mbakam, que a legitima sempre que possível. O primeiro encontro é avassalador em sua cronologia dos fatos narrados. Com apenas cinco minutos de filme, sabemos que a mãe daquela mulher de trinta anos faleceu quando ela tinha apenas cinco, que sua irmã engravidou ainda jovem pouco tempo depois, que a tentativa de sair daquele núcleo familiar levou a um assédio na forma de chantagem sexual do tio; e que ela perdeu a a virgindade em um estupro.
A sequência de traumas se sucedem, a ponto de Delphine questionar se ela, na verdade, não nasceu para sofrer. Chega uma hora em que a própria define o tempo do corte e diz que dali não passa, que continua em outro dia. Depois de uma sequência em que demonstra nervosismo na rigidez do corpo, mas pragmatismo na forma como desenvolve sua própria narrativa, o encontro seguinte mostra outras faces daquela mulher. Com o tronco arqueado, os cotovelos em cima da cama, ela fuma e parece mais tranquila. Uma coberta também a aconchega, mas todos esses elementos não necessariamente trarão uma unidade em seu comportamento.
Ela começa sua explanação mais emocionada e indignada com a forma como o destino agiu sobre sua existência. Por trás daquela cronologia consciente do início, em que ela distribuiu sobre a mesa suas dores como se fossem cartas, havia um pouco de autocontrole como tática. Aqui, não, Delphine está mais entregue e por isso se transforma, altera seu humor de acordo com a fase que reconstitui em sua mente. Na viagem entre a memória e a fala, ela por vezes se anima com alguma história, em outras exagera na forma defensiva como aborda algum tema e – é exatamente aqui – que ela encerra um novo ciclo se assumindo atriz.
Não na forma que entendemos enquanto alguém que atrai a ficcionalidade para a obra, pelo contrário. A mulher faz questão de limitar sua performance ao cotidiano. No período em que se prostituiu em Duala, ela passou por situações que lhe exigiram esse falseamento, essa condução das ações. Não iremos aqui reproduzir tudo o que ela nos conta, principalmente em seu relacionamento, já que faz parte da experiência. Há uma vinculação entre diretora e personagem que conecta o longa-metragem a outro grande filme do circuito de festivais de 2021, o brasileiro “Kevin“, mas o afasta na mesma proporção.
Rosine Mbakam parece pronta para agir em duas frentes, se colocando para o objeto de sua obra tanto como olhar opositor quanto como uma ferramenta de cumplicidade. Dá para sentir no ar as vezes em que ela se aproxima e se afasta, tudo baseado no olhar e nos gestos (que não vemos) e em poucas palavras (que nós ouvimos). Ela, ainda, quebrará a frontalidade em “As Preces de Delphine” por poucos segundos. É quando inicia o terço final captando o céu belga da janela do que, ironicamente, a protagonista chama de “paraíso dos brancos”. Para dar início às consequências de todas as dores partilhadas por ela.
Abandonando – ou assumindo – o personagem, ela fará a oração final. Uma súplica para que a auto profecia de sofrimento imprescritível tenha sido falsa.
Assista à conversa de Carla Italiano e Kariny Martins sobre “As Preces de Delphine”: