Sinopse: Em Nazaré da Mata, Catita (Valmir do Côco) é um Mestre do Maracatu, que entra com conflito com sua esposa, Darlene (Joana Gatis). Ela, convertida à religião evangélica, não aceita mais as tradicionais do marido e tenta convencê-lo a entregar sua vida a Deus.
Direção: Tiago Melo
Título Original: Azougue Nazaré (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 21min
País: Brasil
A Narrativa de Resistência que Insiste em Resistir
“Azougue Nazaré“, vencedor do prêmio dado a cineastas estreantes na edição de 2018 do Festival de Roterdã, traz a estreia de Tiago Melo na direção, após fazer parte da equipe de produção de “Aquarius” (2017) e “Bacurau” (2019). Uma obra com forte carga biográfica, visto que o diretor busca nas histórias de sua avó e mãe a composição narrativa. Ao mesmo tempo reflete um pouco do processo de cisão em que o Cinema Brasileiro parece estar. Uma cisão saudável e que vale a diversos pontos.
É possível que, caso não fosse o filme estreante de Melo, o longa-metragem tivesse encontrado ainda mais abertura nos festivais internacionais. Isto porque o Cinema Pernambucano (que de tão múltiplo em produções e ideias parece construir para si uma filmografia própria) parece ser aquele que consegue abraçar a maior quantidade de possibilidades que o audiovisual nacional vem propondo ao espectador. No caso de “Azougue Nazaré” seria exagero chamarmos de um “filme do tipo exportação”, como se essa diretriz enfraquecesse representantes clássicos do Cinema Brasileiro. Mesmo assim, há uma mistura de tentativa de aplicar uma linguagem universal com a busca para que se confira uma mensagem.
Antes de mergulharmos nessas provocações, cabe tratar da base da longa-metragem, que nos leva a Nazaré da Mata, onde o casal Catita (Valmir do Côco, prêmio de melhor ator no Festival do Rio) e Darlene (Joana Gatis) estão em uma crise, digamos, ideológica. Ele é Mestre do Maracatu e ela, convertida à religião evangélica, tenta levar o marido para a igreja do Pastor Barachinha (Mestre Barachinha), que deixou a vida festiva e se voltou a Jesus. Tiago Melo nos insere nesse mundo de forma desdobrada: primeiro com a preparação do azougue que dá nome ao filme (uma bebida que mistura ervas, limão, cachaça e pólvora). Ao tomá-la, o caboclo atingiria uma transcendência que a fé do Pastor não consegue compreender.
Na sequência, um grupo de jovens brinca de improviso em uma batalha de repentistas, que – assim como nas batalhas de rappers – tem o limite da ofensa como uma característica. Nesse passeio da fase inicial, saímos do canavial da abertura do filme e chegamos à cidade. Lá a cultura machista se impõe. O homem sem nenhum pudor olha uma mulher em uma loja como se fosse um pedaço de carne, até que Catita chega em casa e, com ele, a reprodução dessa sociedade. Com uma atitude grosseira, que beira o desrespeito para com Darlene, somos levados um pouco à rotina daquela moça, grávida e que vê na nova religião uma oportunidade de refletir e de se sentir parte de uma comunidade.
“Azougue Nazaré” contempla algumas questões, mas não as explora. Essa reprodução do machismo é uma delas, mas a que mais lamentamos é aquela em que o Pastor Barachinha surge em um dilema: convertido ao Evangelho, ele não consegue levar o filho pelo mesmo caminho. A narrativa segue o caminho do uso do que transcende para tentar amealhar um debate sobre resistência cultural. Faz isso com as premissas básicas de uma obra com potencial para ser bem recebida pelo grande público (no Brasil e no mundo): da cena de sexo bem encaixada até a clássica “montagem do meio do filme”. Até a música escolhida, “Bilu Bilu” de Pablo, pensa essa identificação imediata.
Seu clímax é como um chamado, mas segue a linha impositiva – o que é até coerente com as atitudes de Catita. Ao usar uma mistura de linguagens tão interessantes, como a captação documental de imagens e a ficcionalidade a partir de atores locais (muitos em seu trabalho de estreia), o longa-metragem tenta chancelar essa necessidade de conter o esmagamento da cultura popular de alguma maneira. Isso é inegável, mas parece que a saída semi-poética proposta deixa a desejar porque não encontra guarida em nenhuma das maneiras de se atingir a convivência pacífica. Boa parte delas parte do diálogo, visto que o neopentecostalismo já está nas estranhas da sociedade brasileira.
Em entrevistas à época do lançamento, Tiago Melo comparou o momento do Cinema Brasileiro atual com o do Cinema Novo. De fato, “Azougue Nazaré” (assim como seu parceiro de produções Kleber Mendonça Filho) se vale de discursos parecidos com os da geração sessentista – entendendo que a convulsão social é um azougue que boa parte da população conseguirá tomar nas salas de cinema dos 10% dos municípios brasileiros que as têm. Ao mesmo tempo que não encontra esse poder de mensagem, é uma experiência prazerosa, rica, pungente, que mostra um cineasta com um futuro de muitas obras cinematográficas merecidamente reconhecidas – se valendo de fatores biográficos para tornar ainda mais interessante a jornada. É muito Cinema Novo, sim (já que Tiago é quem puxou o assunto)! Uma linguagem, portanto, que resiste em nosso cinema.