Sinopse: Em “Bala Sem Rumo”, um contador pressionado, seu irmão veterano de guerra e sua família disfuncional lutam para se integrarem à sociedade coreana do pós-guerra.
Direção: Hyun-mok Yoo
Título Original: 오발탄 (1961)
Gênero: Drama
Duração: 1h 50min
País: Coréia do Sul
Nova Realidade de um Novo País
Quem começa a Volta ao Mundo: Coréia do Sul na plataforma de streaming Petra Belas Artes à La Carte por “Bala Sem Rumo“, encontrará uma obra que mergulha na modernização do Cinema pela reconstrução de um país. Filme mais antigo dentre os sete que são apresentados no festival, que traça um panorama audiovisual da nação, o longa-metragem de Hyun-mok Yoo nos leva ao início dos anos 1960. Na Europa, as narrativas do neorrealismo italiano, na esteira do fim da Segunda Guerra Mundial se tornavam parte do passado. Porém, no Oriente, um território dividido por outro conflito buscava suas referências culturais.
Há uma mistura de simbologias que tornará parte da experiência da sessão uma viagem. Fica até difícil saber por onde começar e é nessas horas que o contexto histórico ajuda muito. A reverberação dos atritos que abalaram o mundo nos anos 1940 teve como consequência a divisão da Coréia em duas, com as forças soviéticas como parceiras do norte e os militares norte-americanos no sul. A nova década marcaria o começo de ofensivas que levariam a uma guerra que envolveria também a China e a recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU).
Até hoje as duas Coréias vivem os reflexos dessa batalha, como mostra notícias de exercícios militares na última semana. Historiadores dão conta de que mais de um milhão de pessoas morreram nessa guerra e, mesmo que com um iminência menor, permanecemos à espreita de que rupturas diplomáticas graves podem acontecer a qualquer momento. A primeira consequência que acompanhamos em “Bala Sem Rumo” fica por conta do legado de traumas, pobreza e abalos físicos e psicológicos da população. Uma narrativa que lembra um pouco, no argumento, “Os Melhores Anos de Nossas Vidas” (1946), obra protagonizada por veteranos da Segunda Guerra Mundial e que venceu o Oscar de melhor filme.
Entretanto, o Cinema aqui estava longe de ser utilizado como uma arma de propaganda ou ferramenta de discursos carregados de positividade. Apesar do armistício ter sido oficializado em 1953, a Coréia do Sul demorou muito a se recuperar economicamente. Enquanto Yoo pensava as representações por trás de sua obra, o povo ia às ruas derrubar o ditador Syngman Rhee na Revolução de Abril. No ano do lançamento do filme, um golpe de Estado forçaria uma estabilidade política. É nesse cenário de terra arrasada que acompanhamos os personagem, alguns caracterizados por um “desejo assustador de viver”, mostrando que o que envolve a história se pauta pela ausência de perspectiva.
A prostituição é um dos temas abordados – e registros dão conta de que um quarto do PIB do país naquele período estava ligado à atividade. Não pense que a contemporaneidade não prega suas peças e nos últimos anos idosas, prejudicadas pela queda do poder de compra das aposentadorias, começaram a se prostituir no país. No filme, um contador mora em uma residência em que um núcleo familiar extenso se aglomera. As roupas das crianças mais velhas são repassadas para as mais novas, como observamos no sapato que uma menina usa, bem maior do que seu pé. Duas mulheres se destacam: uma é atriz e reside nela a esperança de ascensão social. A outra quer trabalhar fora de casa e é nítido que a visão conservadora da sociedade naquele sentido a deixa frustrada.
Nessa moradia familiar comunitária, “Bala Sem Rumo” ainda nos mostra uma senhora sem as suas faculdades mentais que grita “vamos!” de forma desesperada o dia todo. Bem diferente do ideal de país que muitos percebem a Coréia do Sul apenas (sim, apenas) sessenta anos depois da estreia do longa-metragem. Ao trazer a realidade bem distante da redenção, o cineasta encontra sua cota de neorrealismo. Se opondo ao discurso fascista, de transformar os valores morais parte das representações, o movimento cinematográfico que tomou conta da Itália vinte anos antes tinha ali uma nova célula, um laboratório o qual merecia ser aplicado.
Em quase duas horas, somos levados pelo medo dos veteranos de guerra de se tornarem um fardo para suas famílias, não admitindo a condição de invalidez. Aliada à textura dramática, uma condução de direção exemplar, carregada de sensibilidade, de enquadramentos precisos. Teatralizada quando precisa dar força aos diálogos, mas usando a profundidade de plano, colocando os personagens em perspectivas diferentes na cena e denotando que o audiovisual praticado ali já se encontrava em conexão com o vanguardismo da época.
Na segunda metade, a trilha sonora vai ganhando amplitude, fechando as garras da narrativa. A pobreza como legado e também como tragédia, com pouco espaço para o romance e até mesmo para o suspense. Eles estão ali, como elementos da trajetória, mas o embate interno e carregado de moral vai tomando conta da trama. Até que ponto o protagonista deixará de lado sua hombridade (palavra vinculada à masculinidade propositalmente colocada aqui) para enriquecer? Ele mesmo se diz cansado de economizar e nunca ter nada – deixando para depois até a cura de uma dor de dente, que, sabemos, é desesperadora. Por fim ele entenderá parte dos “vamos!” daquele senhora não como um indicativo de loucura – talvez como um arroubo de consciência.
No meio dessa arte política e vanguardista estão algumas das bases da sociedade coreana. Aquela que vemos refletida hoje e que traz ética, disciplina e senso de justiça (por vezes altamente perigoso pelo poder de autodestruição) que as caracteriza. O texto uma hora nos fala de “uma barreira chamada consciência”. Ou seja, no meio da mais grave crise daquela comunidade, ainda havia espaço para os tais embates. De forma periférica, a narrativa ainda traz a luta pela dignidade laboral, uma demanda que vai na esteira da revolução daquele ano e que também será importante para a valorização da educação mais adiante, com o Milagre de Rio Han iniciado nos anos 1980.
Porém, talvez a grande marca de “Bala Sem Rumo” seja o arco final, que aumenta o tom de exagero nas representações dramáticas. Algo que as outras produções, das décadas que seguiram, confirmarão ser um dos traços de originalidade do cinema coreano. Hoje uma escola, capaz de ter o seu próprio Oscar de melhor filme (depois de quase cem do eixo Estados Unidos-Inglaterra). Um filme que registra a reconstrução de um país e a construção de identidade do audiovisual desse país – carregado de lições a quem ousa conhecê-la, como qualquer sociedade.
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