Sinopse: Em “Bela Vingança” uma jovem mulher assombrada por uma tragédia em seu passado se vinga nos homens predadores que cruzam seu caminho.
Direção: Emerald Fennell
Título Original: Promising Young Woman (2020)
Gênero: Thriller | Drama | Crime
Duração: 1h 53min
País: Reino Unido | EUA
Cruel Reparação
Alguns homens em um happy hour, em meio a conversas sobre os empregos que o tornam donos do mundo, avistam uma mulher. Vulnerabilidade. A causa, naquele instante, é a bebida. O roteiro se repete sempre que Cassie (Carey Mulligan) faz uma mistura de experimento com reparação histórica: um deles, muito prestativo, se coloca à disposição para ajudá-la. A “ajuda” quase sempre a levará para a casa dele, onde novas bebidas, drogas e meios de a manterem no falso estado de letargia são aplicados, impedindo qualquer resistência. Ela lhe dá uma lição sempre que o abusador da vez mostra as garras.
Filmado em três semanas, “Bela Vingança” é um dos filmes mais cruéis da temporada de premiações de 2021 – mesmo sem usar as tipificações comuns aos crimes contra mulheres, tais como estupro, agressão e abuso. Essas palavras sequer são ditas – porque não precisamos delas nos diálogos para saber o que se passa. Alguns comentários, quase sempre baseado em releases, o classifica como uma obra de “humor ácido”. Muitas procurarão onde está a graça no longa-metragem. A quebra de expectativa do prólogo, que não apresenta as consequências da atitude da protagonista – a colocando na rua ao som de uma versão moderna de “It’s Rainning Men“, será refletida no ato final mais sufocante dos últimos anos. Por sinal, só há quebra de expectativa para quem torce que a lógica não se manifeste.
Escrito e dirigido por Emerald Fennell – que assim como outras profissionais de Hollywood migram da atuação porque conseguem aprovar seu projetos pessoais, algo impensável até pouco tempo – o longa-metragem merece mais do que a simples lembrança de Mulligan como melhor atriz pela Academia. Os dados serão jogados daqui a alguns dias e no momento dessa crítica a intérprete de Cassie concorre no SAG Awards e no Globo de Ouro. Esse último deu quatro indicações à obra (duas para Fennell, roteiro e direção e o de melhor filme dramático). A recepção acalorada das associações de críticos espalhadas pelos Estados Unidos aumentam as esperanças desse não ser o injustiçado da vez.
Todas as vinganças são acompanhadas de reproduções de discursos atravessados dos abusadores. Um deles tergiversa sobre a ditadura da beleza e como a indústria de cosméticos é feita para oprimir as mulheres. Mansplaining? Taca fogo nele! Em casa, a protagonista é cobrada por ter trinta anos e ainda morar com os pais (um crime hediondo na América) e por ter um trabalho pouco proveitoso em uma cafeteria. “Bela Vingança” nos insere, então, Ryan (Bo Burnham), um ex-colega de faculdade que torna ainda mais viva a traumática lembrança que fez Cassie abandonar os estudos.
Com isso, novas expectativas seguem sendo quebradas. A narrativa de desenvolve rápido, o arco se acentua de forma a abandonar a aventura inicial em prol de uma vingança muito maior – que exigirá destreza e capacidade de articulação da personagem. A trama inicial é retomada sempre que a história precisa dela, mas estamos diante de algo grande aqui. E isso não incluiu a redenção pelo amor, por mais que ela veja a oportunidade de trazer uma resposta aos anseios tradicionalistas dos pais a partir de uma relação forjada. Aos poucos o filme vai abordando as formas como reproduzimos a violência e chancelamos os abusos às mulheres com as velhas desculpas de sempre.
Isso vai da autoridade capaz de investigar um estupro que alega concorrência de culpa, já que a vítima também bebeu. Ou a presunção de inocência, com as provas nunca sendo o suficiente para “arruinar reputações”. Aqui no Brasil o Caso Mariana Ferrer teve como consequência apenas a criação de um crime denominado “violência institucional“. Isso porque aconteceu no julgamento do estupro o que sempre acontece: desautorização, com requintes de crueldade, usando o status de autoridade para criar novos episódios de violência. A diferença é que o isolamento social fez com que as imagens da audiência corressem o mundo.
Veja o Trailer:
Desenvolver ainda mais paralelos com “Bela Vingança” é entrar em um terreno de spoilers que, apesar de ser parte de um texto crítico, evitamos dessa vez porque a experiência de consumir essa obra precisa ser completa. Vale dizer que é muito significativa a culpa que Jordan, advogado vivido por Alfred Molina, carrega – um embate ético que profissionais que atuam no direito criminal precisam conviver. O que torna o filme mais potente é que ele joga, no ponto em que surge esse personagem, com a ideia da superação. Como se, cansado de ver que a sociedade não mudará, Cassie praticasse o “deixa-pra-lá-dismo” e se envolvesse com situações bregas ao extremo.
A forma como Fennell materializa essa breguice é genial. Ao construir uma protagonista que completa trinta anos, ela traz o delírio coletivo de “Stars are Blind“, música que Paris Hilton injetou todo o dinheiro possível para se tornar sucesso em 2006 – fazendo com que a personagem de Carey Mulligan, de certa maneira, lembrasse da sua adolescência. Provavelmente nada inocente, porque sua vulnerabilidade já deveria ser exposta ali. Boas lembranças para Ryan, velhos traumas para Cassie. Juventude que, por sinal, dura mais se a pessoa for homem (ainda mais branco e rico). Tanto que o título original, “promising young woman” é uma referência ao Caso Brock Turner, condenado por agressão sexual e que – na sentença – foi chamado de “jovem promissor” pelo juiz e serviu de inspiração para mais uma obra que dialoga com o movimento #MeToo.
É possível que creditar a grande virada da história ao imponderável, a um elemento que chega sem que ninguém tivesse conhecimento, tire a força realista. Só que, quando isso parecia se tornar um incômodo, a excelente versão de “Toxic” do compositor da trilha sonora Anthony Willis ganha a tela, em seus violinos cortados, como uma grande peça de suspense, nos transportando para um ato final impressionante. A canção é uma das preferidas da cineasta, que promove uma nova interpretação do pop, que marca sua indústria pela construção de femmes fatales (ou Lolitas, dependendo do grau de misoginia do consumidor). Fennell usa essa vulnerabilidade enquanto elemento de tensão, de maneira aguda, nesse momento. Ao contrário da forma – igualmente espetacular – que Ana Johan o faz em “A Mesma Parte de um Homem“, espalhando na narrativa.
Em um espiral de crueldade, “Bela Vingança” nos deixa a desoladora mensagem de perpetuação da culpa da mulher, com uma personagem consciente de seu destino e capaz de abraçá-lo por se negar a permanecer sendo desautorizada.
Ouça “Toxic” na versão de Anthony Willis: