Bertha Lutz: A Mulher na Carta da ONU

Documentário Bertha Lutz – A Mulher na Carta da ONU Crítica HBO Pôster

Sinopse: Documentário original da HBO que conta a história da política e bióloga Bertha Lutz, representante do Brasil na Conferência que estabeleceu as bases para a formação da ONU. Partindo da correspondência original da ativista, o documentário revela a luta de Lutz pela inclusão de preceitos de igualdade de gênero na constituição do mais importante organismo multilateral do mundo.
Direção: Tatiana Issa e Guto Barra
Título Original: Bertha Lutz: A Mulher na Carta da ONU (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 38min
País: Brasil

Documentário Bertha Lutz – A Mulher na Carta da ONU Crítica HBO Imagem

Luz Sobre o Passado

A estreia do documentário “Bertha Lutz: A Mulher na Carta da ONU” era o que a Apostila de Cinema precisava para criar uma categoria de produções disponíveis no serviço de streaming HBO Max. Desenvolvido pelo próprio conglomerado, que inclui a Warner e promete ser mais um player importante nessa forma de distribuição, o longa-metragem dirigido por Tatiana Issa e Guto Barra acompanha os passos da argelina Fatima Sátor e da norueguesa Elise Luhr para dar visibilidade a duas diplomatas latino-americanas, cujos esforços foram responsáveis pelo adição da palavra “mulheres” na Declaração Universal de Direito Humanos, pedra fundamental da ONU em 1948.

Os recortes social e racial se destacam logo nos primeiros minutos do filme, um grande acerto na montagem de Rodrigo Brazão. Era prioritário para uma boa contextualização histórica frisar o fato de Bertha ser uma profissional de carreira, que participou dos círculos masculinos sob a condição privilegiada de mulher branca e rica. Na outra ponta da obra, esse diálogo se concluirá em uma apresentação das pesquisadoras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) de uma forma bem particular. Deslegitimar avanços dos movimentos feministas de outras épocas nunca foi a tática, mas o documentário revela nossa total ignorância sobre certas gêneses, o que também é grave. Um vocábulo que faz toda a diferença e que só existe porque uma brasileira ali estava.

Dois fatos posteriores à produção de “Bertha Lutz: A Mulher na Carta da ONU” provocam dor ao público. O primeiro é a incineração de nossa história com o incêndio do Museu Nacional em 2018, que não sobreviveu para ver a catastrófica ascensão ao poder de quem lá está. O segundo é lembrar do longo período em que o Brasil era um importante agente diplomático, digno de respeito em uma instituição como a Organização das Nações Unidas. Sob a desculpa de que devemos combater o globalismo e que é “bom” nos tornarmos párias mundiais, hoje somos mais do que anões nas relações internacionais – somos antagonistas.

Bertha Lutz não foi importante apenas na elaboração da Carta da ONU em 1948. Sua atuação deu início a um processo inclusivo e afirmativo que impactou, em conjunto com os direito ali expostos, boa parte dos ordenamentos jurídicos. Seu próprio país demorou a importar alguns preceitos. O que seria um período de longo progresso com o fim do Estado Novo não tardou a se transformar em uma ditadura militar, adiando o reconhecimento de muitos direitos coletivos e difusos para o ano de 1988, quando uma nova Constituição parecia ter sepultado aqueles que se voltam contra os direitos humanos.

A busca de Fatima e Elise é pelo resgate do nome de Bertha e da dominicana Minerva Bernardino. Na primeira metade, o longa-metragem reconstitui parte da investigação das jovens, que encontraram um material ignorado pela ONU nos arquivos do próprio órgão. Originalmente publicado em 2016, o artigo levou a tais gravações em 2018 – mas a captação de recursos para a pós-produção nos entrega a obra completa apenas agora. Ao encontrar o que a brasileira deixou por lá, sentimos como se abríssemos um baú de lembranças, que a montagem compõe muito bem com fotografias históricas que chamam a atenção por ter apenas a bióloga e política em meio a dezenas de homens, nos salões nobres dos Estados Unidos e da Europa. Quando os fatos parecem esclarecidos, a luta maior seria pelo reconhecimento – um desafio que as duas mulheres (dos anos 1940 e dos anos 2010) jamais imaginariam ser tão difícil.

Não vale se estender tanto nas minúcias aqui, faz parte da experiência da sessão descobrir parte das consequências junto de Fatima e Elise. É triste assistir a uma relativização do resgate daquelas biografias, para que isso não afetasse o protagonismo primeiro mundista. Menos mal que o ar de frustração não se mantém enquanto tom até o final da obra, que passa de aparente curiosidade sobre uma figura, para uma aula sobre relações entre povos.

Uma lição de que a diplomacia tem regras bem mais complexas e rígidas, que ultrapassam questões de gênero. O choque das pesquisadoras em “Bertha Lutz: A Mulher na Carta da ONU” é genuíno. Elas compreendem que, ao que parece ser o final da missão, há o início de uma nova luta por reconhecimento. Com isso, o apagamento de histórias das mulheres segue facilitado, por releituras atravessadas, que esse filme faz questão de frisar que encontrou resistência até de quem esperávamos serem aliados.

Assista parte do TEDx de Elise Luhr e Fatima Sator

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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