Calidris

Calidris

Sinopse: Nova York atrai Jane e Carlos, como tantos outros, com a promessa de uma vida melhor. Por isso deixamos o país de origem, o Brasil. No entanto, como imigrantes, eles não têm todas as oportunidades que o sonho americano implica. Sua busca por uma vida nova representa a de todos os imigrantes que ousam tentar um novo começo em outro país. É também a história das mudanças que estão ocorrendo nos Estados Unidos e no Brasil. A história fictícia sobre Jane e Carlos neste filme experimental está entrelaçada com as experiências pessoas da equipe do filme, que relata em episódios intercalados sobre sua própria imaginação e a de outros que eles pesquisaram.
Direção: Peter Azen
Título Original: Calidris (2019)
Gênero: Drama Experimental
Duração: 1h 22min
País: Brasil | Estados Unidos

Calidris

Resistência Dupla

Calidris” é um filme que atualiza para uma nova geração de brasileiros de classe média que, desiludidos politicamente ou em crise econômica no país, se tornam imigrantes nos grandes centros urbanos dos Estados Unidos. Esse fluxo nunca deixou de existir, alterando apenas o fato gerador. Hoje se assustam em ver como a maioria do eleitorado que vota no estrangeiro é bolsonarista – quando devemos discutir os motivos que levaram aquelas pessoas a se transformarem em potenciais exilados nos governos do PT. Esse não é o objetivo da obra de Peter Azen. Pelo contrário. Ele tenta traçar um panorama dos compatriotas que chegaram a Nova Iorque nos últimos anos.

Exibido dentro do Festival Ecrã, o experimentalismo dos primeiros minutos é bem menos profundo do que outras obras da mesma mostra. A jornada do filme se inicia com um passeio pelo Central Park, um trânsito de brasileiros que se encontram que inicia à tarde e vai até o anoitecer. Uma existência sem contato, sem verbalizações à primeira vista. A barreira linguística é a primeira apresentada pelo longa-metragem, uma dificuldade comum aos brasileiros – e também aos imigrantes que por aqui aportam. Essa ideia de que devemos nos comunicar na língua oficial do país onde estamos é reflexo da xenofobia incrustada na sociedade. Azen traz isso logo de início, não apenas para demonstrar as dificuldades na convivência social, mas também nos problemas de entendimento nos postos de emprego os quais os protagonistas estão colocados.

De início, Carlos (Rodrigo Fischer) ganha dinheiro entregando panfletos nas ruas e Jane (Yasmin Santana) como cuidadora de cachorros. Mas, aos poucos, os desdobramentos de profissões informais e pequenos bicos vão se impondo. Em paralelo, o reforço dos vínculos com outros brasileiros que estão na mesma situação – algo muito comum nas grandes cidades norte-americanas. Há o desenvolvimento de um senso de comunidade a partir do momento em que nos vemos como párias em uma sociedade. É uma questão de sobrevivência, de manutenção da sanidade, de cuidado com o outro. Lições que alguns brasileiros – que não exerciam esse pensamento ou não respeitavam quem o fazia aqui – acabam por fazer lá.

Há certo amargor nessas assertivas, mas “Calidris” não nos coloca diante de exemplos de pessoas na forma citada no parágrafo acima. Há ali uma exposição de motivos que levaram aqueles personagens a se tornarem imigrantes nos Estados Unidos e o que pesa favorável e desfavoravelmente agora que lá estão. O destaque – interessante como tenho contato com uma amiga que lá vive e a resposta é sumariamente a mesma – fica por conta da segurança. Ou sentimento de segurança, diga-se de passagem. Saciada essa curiosidade, o cineasta começa a trazer um interessante debate para seu filme: a validade (ou até mesmo necessidade) da atuação política sobre os processos eleitorais brasileiros por quem vive no exterior. Em uma democracia que, além de participativa, é impositiva (somos obrigados a votar e precisamos justificar a ausência), essa confusão sobre o conceito de cidadania é comum.

No caso dos imigrantes, mais ainda. Alguns não entendem como podem ter em seu voto o mesmo peso de alguém que reside no Brasil. Irônico que, no longa-metragem, as mesmas pessoas que convivem com essa dúvida são as mesmas que se unem informalmente em uma comunidade de brasileiros.

O filme amplia seu experimentalismo mais adiante, quando todas essas questões estão muito bem postas. Faz uma crítica frontal à própria linguagem, que prima pelo desapego à narrativa (“estamos fazendo cinema-cinema aqui“, dizem em determinado momento). Resgata nos personagens o vínculo com o bloco Alcova Libertina, de tom crítico que sai às ruas em Belo Horizonte. Por fim, “Calidris” brinca com a proposta de venda oficial do Brasil aos Estados Unidos – que é possível que encontremos muito neoliberal apaixonado por aqui que concorde. O adensamento das experimentações se amplia para a linguagem corporal e a suposta teia do estranhamento, fará com que aqueles que não comungam com as críticas ou referências dirão ser, de forma reducionista, um teatro do absurdo. Preferimos mais a sensação de um exercício de Cinema Novo gringo, em que o metabolismo acelerado da pulsante capital do mundo, Nova Iorque, tenha a contribuição de uma tentativa de ocupação – seja qual for – daqueles brasileiros.

Calidris” chama a atenção quando usa como diálogo sonoro com a obra a canção de resistência fascista “Fischia Il Vento“, muito popular na Itália. Em certo momento, a música diz que “toda vizinhança é pátria do rebelde“. A resposta sobre a atuação política, portanto, está dada a esses brasileiros. Resistam combatendo a extrema-direita de lá e usando sua cidadania para contribuir com o combate daqui. É um fardo duro para quem precisa lutar para se manter em um país que não lhes quer. Mas é admirável ver que há aqueles que ainda desempenham essa dupla jornada de resistência a “del fascista vile traditor“.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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