Sinopse: “Se você tivesse que escolher entre eu e sua mãe, quem escolheria?”, Capitu pergunta provocativamente a seu amante problemático.
Direção: Júlio Bressane
Título Original: Capitu e o Capítulo (2021)
Gênero: Drama
Duração: 1h 15min
País: Brasil
Jogo de Interrupção
No jogo de cartas de “Capitu e o Capítulo“, em exibição especial no 10º Olhar de Cinema após première mundial no Festival de Roterdã, o cineasta Júlio Bressane promove mais do que um mosaico de referências (e auto referências) e linguagens artísticas. Ele promove um jogo de interrupção, emulando a tática machadiana de quebra, frustração e (re)criação de expectativa a cada página, a cada conjunto de frames. Apesar da fonte primária aqui ser, por óbvio, “Dom Casmurro“, há algo em torna da narrativa que nos faz projetar o alter ego do escritor, que em “Memórias Póstumas de Brás Cubas“, nos envolveu com falsas promessas de avançar em questões que rodeava por quase todo o tempo.
Na entrevista que o cineasta concedeu a Eduardo Valente – e que você assiste ao final dessa crítica – ele confirma que essa transposição atravessada dos meandros da mente de Bentinho era uma ideia desde a produção de “Brás Cubas” (1985). Uma obra que trouxe dois egressos de Asdrúbal Trouxe o Trombone, Luiz Fernando Guimarães e Regina Casé, para um núcleo de criação audiovisual perfeito para suas propostas oriundas das artes cênicas. Dessa vez ele coloca como casal de protagonistas um homem, também, cria da coxia, Vladimir Brichta e a televisiva Mariana Ximenes. Dois globais, assim como em “Sofá” (2020), dirigido por Bruno Safadi e produtor deste longa-metragem.
A criação, ou exercício, inicial de Bressane coloca o medo como palavra de ordem. Capitu traça o perfil de Bentinho (literalmente), enquanto lhe provoca a um dos grandes dilemas que a heteronormatividade dos homens e seus privilégios tenta, de toda sorte evitar: quem você escolheria em um confronto entre sua mãe e sua amada? Ali o protagonista da obra-prima de Machado percebe que sucessivas interrupções é uma das táticas de sobrevivência de um relacionamento. É a velha fuga a partir da omissão. Evita-se o tema, nem que seja saindo de cena.
Veja o Trailer:
Há uma formatação em “Capitu e o Capítulo” que o conecta a um experimentalismo ensaístico cada vez menos percebido no circuito. O veterano realizador não parece disposto a ceder às questões contemporâneas, não deixa novas dinâmicas e leituras afetar o seu trabalho. Basta dizer que o condutor da pseudo-narrativa é o próprio Machado de Assis, representado em sua branquitude falsa e construída como forma de legitimar seu talento em território racista. Taxar o filme da mesma forma soa como um exagero, afinal, Júlio – por mais transgressor em sua condução marginal de cinema – encontrou dentro de suas propostas o que podemos chamar de tradicional e peca apenas por não olhar para além disso.
A partir do primeiro dilema, inaugurado com uma hipotética escolha, o filme nos leva por mundos intercambiados. O desenho de som ganha um poder antinaturalista, desde os rabiscos de Capitu até o microfone batendo nos ossos de um esqueleto. Como ainda não temos as salas de cinema para que a proposta de Bressane seja ainda mais gutural, também precisamos emular parte do jogo do cineasta. Colocar o volume no alto e fazer um mergulho de fé em nossos sofás quando um diálogo mais baixo é seguido de uma explosão de algum barulho incomum (e incômodo).
Alguns desses sons têm dupla personalidade, podem até nos trazer paz. Um exemplo são as ondas lambendo as areias enquanto cenário pouco alterado do Rio de Janeiro machadiano e bressaniano. Quem espera encontrar um mosaico do primeiro pode se frustrar ao perceber que está na viagem cosmológica do segundo. É o caso dos afrescos de uma igreja unindo o classicismo da imagem com o barulho da modernidade ao fundo. Na rua pré-pandemia parecia sempre haver muita gente falando, muito barulho que penetra em nossos ouvidos como uma massa bem menos poética do que os gessos coloridos da arte sacra.
Quem esperava uma versão de “Dom Casmurro” terá um pouco de Álvares de Azevedo, de ameaças de quebra de quarta parede de Bentinho e do próprio Júlio, ao ampliar a perspectiva para fora do quadro nas deleitosas cenas Inter créditos, com um diálogo com a Mangueira revelando ainda mais o que cabe de autoindulgência de seu realizador. Oferece, claro, o que nos cabe de investigação sobre a suposta traição mais famosa da Literatura Brasileira e foca no grande aspecto que tornou o texto do escritor negro inoxidável: a neurose de um homem sufocado em seus pensamentos.
“Capitu e o Capítulo” é, talvez, um pouco exótico pela atratividade com samba e por atravessamentos da língua tupi como representações que agregam pouca unidade. É, sem dúvida, anacrônico na forma de refletir o mestre dos escritos originários. Mesmo assim, um exemplar de Júlio Bressane que provoca novos sentimentos a cada interrupção e recomeço.
Assista à conversa de Eduardo Valente e Júlio Bressane sobre o filme: