Sinopse: Ambientado no Brasil atual, o filme retrata Cristovam, um homem negro do norte rural, que se muda para uma antiga colônia austríaca, no sul do país, para trabalhar em uma fábrica de leite. Diante de conservadores xenófobos, ele se sente isolado e alienado do mundo branco. Cristovam descobre uma casa abandonada, cheia de objetos e recordações que o lembram de suas origens. Ele se instala ali, reconectando-se com suas raízes. Como se esta casa de memória estivesse viva, mais objetos começam a aparecer. Lentamente, Cristovam passa por uma metamorfose.
Direção: João Paulo Miranda Maria
Título Original: Casa de Antiguidades (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 33min
País: Brasil | França
Entre Onças e Boiadeiros
Não posso dizer que é exatamente surpresa, mas “Casa de Antiguidades“, exibido online na Competição Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi o primeiro filme que me fez sentir falta da tela grande desde o início do isolamento. Não porque os outros – muitos – os quais tive a oportunidade de ver até aqui não a mereçam, mas porque o brasileiro de João Paulo Miranda Maria, neste obra selecionada para o Festival de Cannes, realmente impressiona. E, impressiona por muitos motivos.
Raramente me detenho a questões técnicas em minhas análises (o que pode ser considerado por alguns como uma falha essencial de minhas pequenas narrativas fílmicas), mas – aí sim – me peguei capturada pela cena inicial. “Casa de Antiguidades” em uma só sequência nos transporta para um futuro imaginado (ou imaginável) e, através de um minúsculo buraco na roupa de trabalho do protagonista, nos suga de volta ao presente ancorado em um passado traumático e doloroso.
Neste início, a dinâmica de trabalho de Benjamin Echazerreta (fotografia), Leo Bortolin (som) e do, já citado, diretor, é um pouco desvelada. Digo um pouco porque, apesar de já apresentar a aproximação lenta da câmera, em conjunto com o som inquietamente presente e as cores vivas; o filme e sua trama chegam em um tempo próprio à percepção do espectador – talvez, como um boi encurralado.
A relação entre o que podemos chamar de três protagonistas da trama central, Cristovam (Antonio Pitanga), Jenifer (Ana Flavia Cavalcanti) e, sua mãe, Jandira (Aline Marta Maia), também acompanha o ritmo organizado pelos autores. Ainda que possamos imaginar que algo irá se dar a partir desse encontro, nada é muito evidente até que ocorra. As pistas deixadas como marcas do passado de Cristovam nos deixam em suspenso durante quase todo o filme e, somente são desveladas ao seu final. Não inteiramente, é preciso dizer.
“Casa de Antiguidades” vem como um dos representantes do que tenho exaltado na Apostila de Cinema nos últimos meses. Um filme que deposita em nossos mais sórdidos horrores como constituição de nação – Já o somos? Fomos em algum momento? – a conta de se poder fazer um terror nacional que tem muito de real em seus traços. Isso não se dá evidentemente somente com o cinema. O filme, ainda que não intencionalmente, por vezes lembra a obra da artista visual Aline Motta, colocando em diálogo passado e futuro. Atrás de sua ancestralidade, Cristovam nos proporciona algumas reviravoltas incríveis, mas essas não se tornam tudo o que levamos da experiência.
A cena inicial acaba por se misturar aos pedaços de histórias do personagem vivido por Pitanga, que são inseridos posteriormente. A sua, um tanto peculiar, maneira de viver também demarca uma espécie de anunciação da tragédia. Um homem negro, vindo de Goiás e que mora isolado em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, na qual os descendentes de austríacos são, em seus muitos tons de alvo, a imensa maioria da população. Não precisamos saber muito sobre a história mundial (ou da brasileira) para imaginar diversos cenários de tragédia que poderiam acontecer. Ainda assim, o longa-metragem paralisa quando o som do berrante e o ponto de boiadeiro, finalmente, detonam a virada inescapável.
Boiadeiros, onças e bois tomam conta da tela. Cristovam acha novamente sua pele. A população, que estava à espreita por qualquer deslize de suas, também alvas, botas de plástico toma para si o que sempre esperou. A vingança, afinal, é de quem? “Casa de Antiguidades” esfrega em nossas caras toda ambiguidade e força do racismo. Algumas soluções provisórias são necessárias e emergenciais, mas é preciso pensar no leite, já excessivamente fermentado, que ajudamos a manter. É hora. Já passou da hora.
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